“Uma história mal contada
ou a teoria do apagão” – por Diogo Ramada Curto, in Público
"Todos estes pontos de um inventário mais vasto são minudências que não dão conta do argumento principal que nesta biografia se defende. Um argumento, de resto, que não é inédito. Já Fradique dissera, acerca desse personagem cheio de talento que era Pacheco, deputado, ministro da Marinha, presidente do Conselho e conselheiro de Estado, que ele e Portugal se completavam: “sem Portugal – Pacheco não teria sido o que foi entre os homens; mas sem Pacheco – Portugal não teria sido o que é entre as nações”. No fundo, Pacheco era uma espécie de microcosmos, um Portugal em ponto pequeno, um laboratório para se compreender algo de mais vasto, uma mini-pátria.
Ora, MFB, no momento em que põe de lado o seu método narrativo,
também se alcandora à grande teoria sobre a pátria. E lá vem, então, a ideia
sobre Portugal, formulada com clareza, para que não restem dúvidas, nem apelos
à complexidade: “A história contemporânea de Portugal assemelha-se a uma série
de apagões” (p. 146). Sem mais, para que os “indígenas” – essa massa ignara e
analfabeta de portugueses, referidos ao longo do livro com uma proverbial
condescendência – possam entender o sentido da história. Ou seja, o Liberalismo
e a República apagaram o absolutismo e o miguelismo. Seguiu-se o Estado Novo, a
“revanche de um país profundo, católico e conservador que durante cem anos
(1834-1926) não tivera a oportunidade de se manifestar”; Salazar pôde, então,
“apagar esses cem anos ‘heréticos’ e ‘anárquicos’; por sua vez, “o 25 de Abril
apagou o Estado Novo” e, a partir de então, todo o país foi dominado pela
esquerda, até que em Maio de 2014 se começou a fazer luz, com o aparecimento de
um novo diário electrónico (pp. 144-146).
Um novo apagão se anuncia, perguntar-se-á no estilo profético de
quem anuncia a boa nova? Haja esperança! E pouco importa, a este último
respeito, que MFB acabe por constatar, acerca das últimas décadas: “sob o
aspecto da liberdade e diversidade intelectuais, Portugal mudou muito. Desde
logo desapareceu a hegemonia comunista assim como o império da cultura e língua
francesas” (p. 508). O certo é que a teoria histórica do “apagão” fica
demonstrada no acto da sua enunciação. Talvez mesmo se imponha a essa outra
tese de um escritor e crítico exímio: “desde 1820 a 1988 a Direita governou, em
números redondos, cento e quinze anos e a Esquerda cinquenta e dois” (Vasco
Pulido Valente, Às avessas, Assírio & Alvim, 1990, p. 248). Acredito
mesmo que, nos círculos mais devotos, a nova tese transformar-se-á em argumento
de autoridade e, a partir daí, em dogma.
Essa mesmíssima teoria histórica do apagão é projectada, pela
própria autora, na vida que toma por objecto de análise. Isto é, a mesma
descontinuidade do Portugal contemporâneo – aquela que é própria de um apagão
eléctrico – encontra-se plasmada na trajectória biográfica de AB. Da infância e
adolescência em Vila Real “ficou pouco”, pois deu-se uma “mudança abrupta de
direcção sem ficar a olhar para trás” (p. 36). Da saída do PC e da sua
experiência de controleiro do Partido na Suíça, na década de 1960, também nada
ficou, sendo de notar que já “não era o primeiro nem seria o último corte que
Barreto operava na vida sem guardar angústias ou recordações nostálgicas” (p.
68). A mesma descontinuidade fez-se sentir, de novo, no que escreveu em 1973,
relativamente ao que publicara apenas dois anos antes: Barreto era, então, um
homem diferente, o seu pensamento tinha mudado (p. 92). O rol dos momentos de
ruptura poderia continuar, mas para compreender todo esse paralelismo entre
Portugal e AB – mundo grande e mundo pequeno, Portugal e Portugalete, ambos com
os seus sucessivos e simultâneos apagões – é inevitável referir, novamente,
esse figurão: o Pacheco de Fradique.
Claro que nem tudo são descontinuidades na vida de AB narrada
por MFB. Há, pelo menos, um momento de autêntica antecipação. Foi quando AB
expôs a sua tese acerca do Estado Novo, nos idos de 1970. Nada mais, nada menos
do que 24 anos antes daquela que parece ter sido “a primeira ruptura
historiográfica sobre o tema”, estabelecida por Fernando Rosas (MFB dixit, p.
82). Mais concretamente, a arte de fazer durar atribuída a Salazar, um sábio
político capaz de estabelecer equilíbrios e formas de arbitragem, envolvendo
monopólios e pequenos grupos, grandes agrários e pequenos proprietários, toda
essa teoria do “equilíbrio arbitrado”, que atrasou o progresso capitalista, já
se encontrava num texto de AB. Ou seja, a grande ruptura nas interpretações do
Estado Novo, se existe, foi ideia de AB.
Mas terá sido mesmo assim? É normal que dois intelectuais de
esquerda da mesma geração, em momentos diferentes do seu radicalismo, tivessem
procurado disputar a interpretação canónica do Estado Novo, em última análise,
da autoria de Álvaro Cunhal e de outros. Porém, considerar que a transformação
em tese de análise historiográfica da auto-representação do equilíbrio
corporativo do Estado Novo, encimado por Salazar no papel de árbitro, foi capaz
de criar uma ruptura de interpretação é contribuir para a formação de um mito
historiográfico. E, acrescente-se, não haverá em tudo isto um toque de déjà
vu? Até parece, sobretudo no confronto com as interpretações
historiográficas dos anos 1950 e 1960, mais informadas pelas ciências sociais –
bem longe dos caminhos da história narrativa –, sobre como os ditadores integraram
as elites nos seus regimes e criaram instituições para regular conflitos e
tensões entre grupos de interesse?
Muito poderia ser dito de outras antecipações, mas MFB arrisca
pouco. Confesso que, ao ler as páginas acerca do modo como, em 1973, AB teorizou
acerca de Portugal, situado entre capitalismo atrasado e desenvolvimento
subalterno, esperei em vão pela óbvia conclusão: uma antecipação das teses da
“semi-periferia” formuladas, mais tarde, por Boaventura de Sousa Santos (p.
109-111). Porém, são as constantes referências e insinuações galantes às
namoradas e às mulheres, a começar pela falta delas no Portugal lúgubre de Vila
Real, que tornam de novo inevitável recapitular o que Eça escreveu acerca de
Fradique: “a influência deste ‘feminino’ foi suprema na sua existência”.
Impossível, também, deixar de apontar o momento em que, ao ser nomeado
ministro, AB acorreu a comprar os fatos escuros no Lourenço & Santos (pp.
154, 156). É que também Fradique Mendes escreveu a Sturmm, o célebre alfaiate
de Conisberga, dizendo-lhe que punha “no dorso de toda a sociedade essa casaca
de conselheiro, lisa, insípida, rotineira, pesabunda – (...) criando um país de
conselheiros”.
Mais importante, ainda, é perceber o sentido do conjunto da obra
escrita de AB. As suas desconfianças em relação à teoria, desde que rompeu com
o marxismo, a sua atracção pelos factos e estatísticas, no fundo a evidência de
uma almejada realidade, e depois a insatisfação pelo trabalho já feito, a
indicar uma enorme expectativa nessa obra de interpretação sobre a pátria – uma
espécie de novo Portugal contemporâneo – a publicar um dia. No Verão de 2006 ou
2007, nos três meses passados em Oxford, “longe do mundo e das tentações que em
Lisboa encontra sempre ao voltar da esquina”, AB esteva quase a alcançar esse
objectivo (p. 380). Chegou, então, às 260 páginas! Infelizmente, todo esse
trabalho “não serve para nada”, segundo as próprias palavras de AB (id.).
Entretanto, meteu-se o governo de Sócrates, a crise internacional e a Troika.
Os trabalhos de recolha estatística, agora com o apoio profissional da PORDATA,
também se interpuseram, impedindo que o livro chegasse ao fim. Porém, AB não
desistiu: em Março de 2014, “estava decidido a iniciar precisamente essa prova
final – o livro da sua vida” (p. 381).
O leitor não pode deixar de se comover ao ler essas páginas. Um
autêntico combate em nome da escrita de um livro, uma súmula interpretativa, a
que AB chamou em tempos a “suma teológica” (p. 381). Mordidos de curiosidade,
apetece perguntar: estará AB, ainda, a escrever essa tal grande obra? E se
assim não é, o que lhe falta? Quais os obstáculos? Excesso de distracções? O
turbilhão dos media? Informação em excesso? Não sei, e o livro de MFB promete
uma explicação, mas acaba por não fornecer resposta certa. É que é preciso
evitar que um dia – esperemos que seja daqui a muitos anos – se venha a
discutir se a obra sempre existe ou se apenas desapareceu. De qualquer modo,
mais uma vez, é impossível esquecer a discussão póstuma sobre a obra de
Fradique. Este, com a sua superior inteligência, deixara apenas o poema
intitulado Lapidárias e, em latim, o Laus Veneris Tenebrosae. A
Ramalhal figura considerou que os seus papéis, enviados primeiro para a “vala
comum” e, depois, à guarda dos príncipes de Palidoff, na Carcóvia, continham
apenas memórias. Todavia, Eça concluiu que, afinal, “nesse cofre de ferro,
perdido num velho solar russo, não existe uma obra – porque Fradique nunca foi
verdadeiramente um autor”.
Uma leitura da biografia de AB atenta aos pontos de contacto com
uma série de figuras criadas por Eça de Queiroz pode ser discutível, mas tem a
vantagem de alertar para a necessidade que existe de qualquer autor de uma
narrativa, historiador de ofício ou não, conseguir controlar melhor o que
escreve e os vários sentidos da sua prosa. É que a ingenuidade narrativa de MFB
não resiste ao confronto com a escrita de um Eça, que sabe tirar partido da
ironia, das ambiguidades e dos duplos sentidos. A falta de cruzamento de
fontes, de instrumentos de prova, também debilita o livro. AB não tem
responsabilidade, pois não escreveu, nem quis autorizar, apenas “deu sinais de
que no essencial se revia no que eu escrevera” (MFB dixit, p. 19). Foi MFB, sem
dúvida com boas intenções e com uma admiração genuína por AB, que alcançou um
resultado inesperado, pois acabou por aproximar, injustamente, AB de Cornuski,
Pacheco, Fradique e Sturmm.
Enfim, segundo MFB, “António Barreto tinha tudo para ser tudo o
que há para ser em Portugal” (p. 18). O mesmo se passava com Pacheco, na
célebre carta VIII de Carlos Fradique Mendes ao Senhor Mollinet: ‘Portugal
todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo’.
Uma história mal contada ou a teoria do
apagão – por Diogo Ramada Curto, jornal Público / Ípsilon, 3 de Junhode 2016, p.24-26 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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