“António José, as seis palavras” – por António Valdemar, in Público
[Tem monumentos à sua memória em Lisboa, Coimbra, Penacova e
Vale da Vinha. Falta a consagração que merece no Panteão Nacional]
“A personalidade humana e o percurso político de António José de
Almeida – uma das mais notáveis figuras da história da República, da
implantação e consolidação do regime e da sua defesa em momentos de
adversidade, de controvérsias violentas, de combates ferozes, de atentados
terroristas – identificaram-se com os valores e os princípios políticos e a
responsabilidade cívica adoptados pela sua geração.
Enquadram-se na semente lançada por Henriques Nogueira,
prosseguida por Teófilo Braga e outros fundadores do Partido Republicano e que,
após o centenário de Camões de 1880 e do centenário de Pombal de 1882,
mobilizou inúmeros jovens de Lisboa, Porto, Coimbra e outros pontos do país.
Associaram-se ao movimento de indignação contra o Ultimatum de
1890 e à revolta republicana do Porto de 1891. Revitalizam o Partido
Republicano e vão ser os protagonistas de um tempo de mudança, da transição do
século XIX, para o século XX, das várias formas de lutas que envolveram várias
tendências de republicanos e monárquicos e movimentos radicais.
António José de Almeida é uma dessas grandes figuras. Há,
todavia, no perfil de António José de Almeida aspectos que o distinguiram de
outros Presidentes da República como Teófilo Braga, Manuel de Arriaga,
Bernardino Machado e Manuel Teixeira Gomes e que o singularizariam perante
Afonso Costa e Brito Camacho, para mencionar dois chefes partidários seus
contemporâneos.
António José de Almeida nasceu em Penacova (Vale da Vinha, São
Pedro de Alva, a 17 de junho de 1866 – há 150 anos); e faleceu em Lisboa (31 de
Outubro de 1929). Está salvaguardada a casa onde nasceu, mas a casa de Lisboa,
onde residiu e faleceu, em Lisboa, na Avenida António Augusto de Aguiar –
esquina com São Sebastião da Pedreira – foi demolida. Existem monumentos à sua
memória em Lisboa, em Coimbra, em Penacova e em Vale da Vinha. Falta, há muito,
e volto a sugerir, a consagração que merece no Panteão Nacional.
A formação intelectual de António José de Almeida decorreu em
Coimbra — Liceu e Faculdade de Medicina. Terminou o curso em 1895. Exerceu a
Medicina em Angola, São Tomé e em Lisboa. Entrou no Partido Republicano ainda
estudante da Universidade em Coimbra. Ingressou no Parlamento como deputado e,
por exemplo, com Afonso Costa, Brito Camacho e João de Menezes formou o núcleo
duro que combateu a monarquia e acelerou a implantação da República.
Integrou o I Governo Provisório, fez parte da Constituinte de
1911, foi ministro e Presidente da República. Numa época de paixões
exacerbadas, de instabilidade política, económica e social caracterizou-se
fundamentalmente pelo espírito de tolerância e abertura, pela defesa das
liberdades constitucionais, entre as quais a liberdade religiosa. Promoveu a
concórdia, a convergência com outros partidos, em torno de objectivos nacionais
e internacionais. Insurgiu-se contra o favoritismo e a corrupção. Em várias
campanhas no jornal República, de que foi fundador e director,
alertou para o ‘bando esfaimado e criminoso’ que denegria a República com
oportunismos, carreirismos, nomeações de cargos públicos e outros favoritismos
partidários.
Empenhou-se na operacionalidade da Justiça, na dignificação da
magistratura, na eficácia e funcionamento dos Tribunais em todas as instâncias.
A defesa das regiões e a descentralização administrativa foi outra das suas
preocupações. ‘Fazer regionalismo’ – escreveu ‘é a melhor maneira de fazer
patriotismo, porque sempre a política nacional foi tímida e frouxa onde lhe
faltou a acção local, que é a única e verdadeira força para estimular as
energias de um povo e dar consistência as aspirações de uma nacionalidade’.
Permaneceu sempre no espírito e na vontade política de António
José de Almeida a autonomia da Cultura, o reconhecimento dos intelectuais e
artistas e o prestígio das instituições que os representavam. Durante a presidência
do governo da União Sagrada (de 15 de março de 1917 a 25 de Abril
de 1917 e como Presidente da República (de 5 de outubro de 1919 a 5 de outubro
de 1923), o único presidente da República que concluiu o mandato, António José
de Almeida organizou manifestações junto dos principais monumentos para
despertar valores culturais e cívicos. Na sequência destas iniciativas Nuno
Simões, enquanto ministro, decretou a classificação dos monumentos históricos,
instituindo a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, com quatro
secções: Lisboa, Porto, Coimbra e Évora.
A cultura europeia constituiu uma das referências primordiais de
António José de Almeida. Ao deixar São Tomé e antes de se estabelecer em Lisboa
decidiu aprofundar a sua formação intelectual e profissional em Paris, junto de
médicos insignes como Guyon, Tuffier, Cathlin e Pinard. Encontrou-se,
casualmente, com o jovem Reinaldo dos Santos que havia concluído o curso na
Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
Contou-me este episódio Reinaldo dos Santos acrescentando que,
também, frequentava o mesmo estágio Alexis Carrel, alguns anos depois, Prémio
Nobel, pioneiro da cirurgia experimental e do transplante de órgãos e tecidos.
(Tive o privilégio de publicar – Diário de Notícias de
5 de Dezembro de 1980 – correspondência inédita de Alexis Carrel e de Afonso
Lopes Vieira para Reinaldo dos Santos).
Contudo, o projecto político e cultural de António José de
Almeida – objecto de um relevante estudo de investigação de Luís Reis Torgal – também
abrangeu o Atlântico. Era (e continua a ser) um dos vínculos de Portugal com a
Europa e com o Mundo. Basta citar a relação de António José de Almeida com o
Brasil, a viagem presidencial que efectuou em 1922, ano do centenário da
independência do Brasil e da travessia do Atlântico Sul por Gago Coutinho e
Sacadura Cabral. Marcou a descoberta da navegação aérea transoceânica, guiada
pelos ‘regimentos das estrelas’, a ‘pesar o sol pelo astrolábio’ e, ao mesmo
tempo, um ato político, repleto de carga simbólica, para a aproximação entre os
dois povos.
Toda a trajectória de António José de Almeida se resume a uma
afirmação de equanimidade contida em seis palavras – que
continuam a ganhar amplitude e significado – liberdade, tolerância, justiça,
pátria, europa, atlântico. Seis palavras que, para o ‘esplendor de Portugal’,
lhe encheram a vida, iluminaram a consciência, moldaram o carácter e orientaram
a acção.
António José, as seis palavras –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], jornal
Público, 26 de Julho de 2016, p.46 – com sublinhados
nossos.J.M.M.
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