"Manifesto Anti-Dantas,actualidade e permanência” – por António Valdemar
[A contestação literária e a desmontagem do oportunismo político]
“O Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, insere-se na
linha de intervenção da geração do Orpheu ao introduzir uma nova literatura e
uma nova estética e, ao mesmo tempo, ao proceder à contestação de
personalidades consagradas nas instituições oficiais. Publicado há um século —
que este ano se completa —, e tendo falecido Júlio Dantas há mais de 50 anos,
será legítimo falar em actualidade e permanência de um texto visceralmente
panfletário, relacionado com figuras e acontecimentos pontuais, eventualmente
sujeito ao esquecimento e à erosão do tempo?
É evidente que Júlio Dantas permanece ligado a uma época e às
suas circunstâncias, mas, além disso, constituía um modelo social, cultural e
político que não se extinguiu. Já existia antes e continuou a existir depois.
Eça de Queiroz já ridicularizara e exautorara o conselheiro Acácio, o Pacheco,
o Dr. Margaride, o Gouvarinho, o Steinbroken, o conde de Abranhos, o boticário Carlos
e outros símbolos da presunção oficiosa e da mentalidade conservadora. Que,
aliás, também, se deparam na Bíblia, no teatro de Plauto, nos autos e nas
farsas de Gil Vicente...
Almada Negreiros tinha 23 anos. Encontrava-se na força da vida.
Havia sido ‘director artístico’ e colaborador do Papagaio Real, semanário
monárquico de sátira política. Pertencia, com Fernando Pessoa, Mário de
Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, entre outros, ao grupo do Orpheu, que, ao
surgir em Março de 1915, desencadeou os maiores protestos. Numa crónica na Ilustração
Portuguesa, Júlio Dantas fora um dos muitos que execraram o Orpheu, juntando-se
aos psiquiatras que consideraram paranóicos os colaboradores da revista.
O Manifesto Anti-Dantas não é, apenas, um ajuste de contas e a
escolha de um bode expiatório. Traduz o conflito de gerações e integra-se numa
corrente literária e artística com orientação estética de ruptura. Em 1913,
Fernando Pessoa já se pronunciara contra a poesia de Afonso Lopes Vieira a
propósito da publicação de Bartolomeu Marinheiro e, no mesmo texto, não deixou
também de se distanciar de Júlio Dantas: 'os homens do Portugal de
amanhã', ‘educados na estupidez’, ‘terão por Shakespeare o Sr. Júlio
Dantas e por Shelley o Sr. Lopes Vieira’.
O pretexto imediato do Manifesto Anti-Dantas resultou da
estreia, a 21 de Outubro de 1915, no Teatro Ginásio da peça de Júlio Dantas Soror
Mariana. Almada era um dos que patearam a peça e, no dia 25, no jornal A Lucta,
dirigido por Brito Camacho, reduziu a Soror Mariana a uma ‘baboseira teatral’ e
apontou Dantas como um ‘homem cuja mediocridade inchada de egotismo o levou a
comparecer em cena, ao chamamento de meia dúzia de claqueurs, ignorantes e
ineptos’.
Mas a ofensiva implacável viria no Manifesto. Dantas estava no
auge da celebridade. Com a Ceia dos Cardeais projectou-se através da Europa e
das Américas e estendeu-se até ao Japão. A Ceia dos Cardeais, logo após a
primeira representação, pelos maiores atores, constituiu um sucesso de
livraria. Houve cinquenta edições, mais de 200 mil exemplares; traduções nas
mais diversas línguas e duzentas e cinquenta imitações e paródias, em Portugal
e no Brasil. A última de José Vilhena não sei se já foi publicada.
Além de Júlio Dantas, Almada disparou ataques a muitas outras
figuras públicas da literatura, do teatro, da pintura, da escultura e do
jornalismo. Contudo, a investida a Júlio Dantas tinha, igualmente, uma forte
componente política. Atingia o Júlio Dantas que passara, sem hesitações, de um
regime para outro, da Monarquia para a República. A transição política também
se reflectia na trajectória literária — a ligação ao poder, aos sucessivos
governos, às respectivas cúpulas partidárias.
Costumo resumir o êxito de Júlio Dantas através das seguintes
peças: A Ceia dos Cardeais, para deslumbrar a família real e ter acesso
ao paço; Um Serão nas Laranjeiras, ao pressentir a decomposição e queda
da Monarquia; Santa Inquisição, para a I República e agradar a Afonso
Costa; Carlota Joaquina, para desmistificar o Integralismo Lusitano; Frei
António das Chagas, para o Estado Novo, empenhado na reconciliação do
Estado com a Igreja. Em 1945, ao irromper o MUD (e a situação começou a
estremecer), Dantas fez uma versão da Antígona. A oposição revia no
tirano e detestável Creonte o tirano e detestável Salazar.
Não se registaram sinais de mudança. Júlio Dantas assinou o
protesto fabricado na União Nacional e no Diário de Notícias, contra o
"obviamente, demito-o" (Salazar), declarado, sem papas na
língua, por Delgado, em 1958, na apresentação da candidatura à Presidência da
República.
O ponto final das versatilidades políticas e literárias de
Dantas verificou-se em 1960. Tinha 86 anos. Já fora substituído na Presidência
da Academia por Reynaldo dos Santos. Mas não deixava de intervir. E aceitou
subscrever, ao lado dos representantes da oposição democrática, a candidatura
de Aquilino Ribeiro para Prémio Nobel da Literatura. Tinha plena consciência de
que se tratava de um expediente para conseguir repercussão internacional, de
modo a arquivar o processo-crime devido aos ataques cerrados ao regime e ao
próprio Salazar no romance Quando os Lobos Uivam. E no âmbito do
centenário do Infante D. Henrique, que se comemorava na altura, Salazar avançou
com uma amnistia que abrangeu Aquilino e o libertou das picardias do Tribunal Plenário
(da acusação inquisitorial do Ministério Público por Lopes de Melo que, após o
25 de Abril, ascendeu ao Supremo Tribunal de Justiça), das garras da PIDE, de
um julgamento vexatório com pena suspensa ou efectiva.
Por tudo isto, Júlio Dantas foi tudo ou quase tudo o que quis e
que é possível um intelectual exercer em Portugal: director e professor do
Conservatório, comissário do Governo no Teatro Nacional, inspector superior das
Bibliotecas e Arquivos, deputado, dirigente partidário, ministro de várias pastas.
Desempenhou, episodicamente, funções de médico da Guarda Municipal em Lisboa,
antecessora da Guarda Nacional Republicana. Desejou ser médico da Casa Real,
mas não havia lugar vago. Estavam preenchidos por António Lencastre e Thomaz de
Mello Breyner.
Ser médico terá facilitado a adesão à República, durante as
horas de expectativa revolucionária. Em vez de ir aos banhos de São Paulo, onde
estava reunido o futuro governo provisório, com grandes personalidades da
Maçonaria, deslocou-se a cavalo à Rotunda, oferecendo os seus serviços clínicos
aos militares e aos civis armados da Carbonária. Está referido e documentado
por Machado Santos no relatório acerca das fases do processo que conduziu à
proclamação da República em 5 de Outubro de 1910.A Júlio Dantas faltou-lhe, apenas, ser Presidente da República, Prémio Nobel e cardeal. Soube adaptar-se às conjunturas políticas. Reunia as condições essenciais. Era filho de um general e sobrinho de outro general. Vestia com gosto. Sabia o que era um smoking e uma casaca. Nunca teve caspa na gola do casaco nem, muito menos, as unhas sujas.
Mas a maior parte dos dirigentes e responsáveis institucionais
também o repescava, porque sabia cumprir a liturgia do poder, oficiar o
cerimonial do Estado e conduzir o funcionamento de uma academia. Era um
ritualista exímio. Um cenógrafo da língua para todas as situações, as mais
solenes e as mais insólitas.
Almada, ao fazer a desmontagem dos ecletismos políticos (e
faltava assistir a mais 50 anos de oportunismo), pôs o dedo na ferida:’"Dantas
é um habilidoso e um ciganão, (...) um pantomineiro. Para ter chegado aonde
chegou basta não ter escrúpulos, nem morais, nem artísticos, nem humanos. Basta
usar o tal sorrisozinho, basta ser muito delicado (...) e ter olhos meigos
(...) Basta ser Judas. Basta ser Dantas’.
Seja como for, o Manifesto Anti-Dantas, de Almada
Negreiros, alertou uma ou duas gerações, a do Orpheu e a da Presença,
e mesmo depois disso, para outros Dantas. Antes dele, Castilho foi um Dantas do
século XIX. A carta de Antero de Quental Bom Senso e Bom Gosto,
publicada, em 1864, contra António Feliciano de Castilho e seus discípulos, não
se restringiu à luta de gerações literárias mas à denúncia da promiscuidade do
elogio mútuo.
E quantos outros Dantas temos conhecido tão solícitos e ávidos
de protagonismo, mas sem a inteligência e a cultura de Dantas? Infelizmente, o
que nos tem faltado são manifestos de Almada contra os Dantas, e cartas de
Antero contra os Castilhos. Justifica-se, portanto, a actualidade e
permanência do Manifesto Anti-Dantas. O panorama que se nos depara é
confrangedor: poetas e escritores em santa aliança e sagrado conluio, numa
descarada troca de panegíricos. Mas é mais angustiante e deplorável em relação
à política, aos partidos e à banca. As palavras incendiárias e as sínteses
fulminantes de Almada Negreiros no Manifesto Anti-Dantas começam a ser
insuficientes para desmascarar a progressiva confusão de valores e princípios
com interesses e negócios.”
Manifesto Anti-Dantas, actualidade e permanência – por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe
de Letras da Academia das Ciências], jornal
Público, 12 de Agosto de 2016, p.48 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
Muito obrigado pelo texto. Aprendi imenso.
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