quarta-feira, 9 de junho de 2021

HERCULANO, OS AÇORES E OS AÇORIANOS – POR ANTÓNIO VALDEMAR

 


O leilão realizado em Lisboa com numerosos manuscritos de Herculano, juntamente com outros manuscritos de figuras literárias e políticas de renome permite uma revisão de obras publicadas de Herculano; esclarece alguns aspetos da sua intervenção literária e política; dá oportunidade para retificar o que se sabe acerca da permanência nos Açores; e, porventura, revela, fatos desconhecidos da vida familiar, nos últimos dez anos, em Vale de Lobos.

Mas, para já, convém salientar algumas questões: este leilão põe termo ao mistério e ao silêncio a propósito da real existência e da identificação da propriedade de manuscritos de Herculano, na posse de herdeiros; não se trata de um manancial de inéditos pois, em diversas circunstâncias houve a divulgação de parte do espólio.

A correspondência com personalidades de renome não significa que todas as cartas tivessem sido dirigidas a Herculano. Teve, sem dúvida relações com algumas ou muitas, mas com outras não é provável que tivesse tido relações. A informação da casa leiloeira cita, por exemplo, Manuel Fernandes Tomaz. Ora quando faleceu, em 1822, Herculano tinha 12 anos.

Finalmente, a Câmara de Santarém arrematou o conjunto por trinta mil euros. Reuniram – se condições para se constituir, em Santarém, um Centro de Estudos Herculanianos. Todavia, a Biblioteca Nacional nos termos estabelecidos pela lei, poderá exerceu o direito de preferência.

Herculano é uma personalidade emblemática de historiador, de escritor e de cidadão, cuja vida e obra permanecem, sobretudo, ligadas a Lisboa e a Santarém. Senão vejamos: em Lisboa nasceu, num dos velhos pátios da cidade, o Pátio do Gil, na rua de São Bento, mesmo defronte da casa de Amália Rodrigues e hoje reduzido a um improvisado parque de automóveis. Estudou nas Necessidades, no Colégio dos Oratorianos, a ordem religiosa escolhida pelo Marques de Pombal, a fim de preencher as lacunas no ensino resultantes da expulsão dos Jesuítas. Recebeu dos Oratorianos um lastro de cultura clássica. Em Lisboa frequentou a aula de diplomática na Torre do Tombo e a Academia de Marinha para aprender Matemática. Depositou na Torre do Tombo documentação fundamental para sistematizar, a parte inicial do Portugaliae Monumenta Historica que lhe foi solicitado pela Academia das Ciências; e para elaborar a História de Portugal que desencadeou uma das mais ruidosas polémicas com a igreja, por não admitir o Milagre de Ourique. Esteve á frente da revista Panorama que definiu a defesa e a valorização do património edificado e do património imóvel. Em Lisboa dirigiu a Biblioteca da Ajuda e enquanto ali residiu estimulou a formação intelectual e cívica de D. Pedro V; e manteve uma tertúlia com os seus mais notáveis contemporâneos. Tudo isto ficou pormenorizado nas Memórias de Bulhão Pato.


Herculano tem fortes vínculos com o Açores e alguns açorianos. Exilado político em França e na Inglaterra, dirigiu - se para os Açores; primeiro, para o Ilha Terceira depois para São Miguel. Incorporou – se na expedição que embarcou, sob o comando de D. Pedro, para o Cerco do Porto a fim de derrubar as forças miguelistas. Ernesto do Canto no Arquivo dos Açores revelou fatos e publicou elementos da maior importância. Entre outros historiadores e críticos Vitorino Nemésio, em pesquisas nos manuscritos agora leiloados, completou muita informação para reconstituir a história do exilio para a instauração do liberalismo.

A relação de Herculano com Santarém tornou - se outra referência obrigatória. Comprou em Azoia de Baixo a Quinta de Vale de Lobos. Os dez anos em Vale de Lobos (1867/ 1877) e que coincidiram com o casamento de Herculano com Mariana Meira não se resumiram ao interesse pela agricultura e à produção de azeite, em circunstâncias que se ignoravam e passaram a ser utilizadas. A tranquilidade de Vale de Lobos foi interrompida com visitas de amigos, de discípulos e de figuras como Madame Ratazi e o Imperador do Brasil.

Era, contudo, o ambiente propício para se concentrar, refletir e escrever. Em Vale de Lobos, por exemplo, manifestou o apoio às Conferências Democráticas do Casino e o protesto em face do encerramento pelo Governo do Duque de Avila. Se amplitude da obra de Herculano foi analisada por Joaquim Veríssimo Serrão, os vínculos de Herculano a Santarém foram examinados, contextualizados e divulgados por Virgílio Arruda.

Um dos grandes conhecedores de Herculano, Vitorino Nemésio apresentou, em 1935, para as provas de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa uma tese inovadora sobre Herculano. Um ano antes publicara Cenas de um ano da minha vida. Mais tarde compilou e anotou As Cartas de Vale de Lobos ao Duque de Palmela e a João Cândido dos Santos.

Herdeiros do espólio

Num prefácio escrito, em 1933, Vitorino Nemésio incluiu «palavras de vénia» a David Lopes a quem se deviam «algumas das mais sólidas páginas de estudos herculanianos» e por ter indigitado Nemésio, aos editores da Bertrand, «para o substituir na «vigilância das obras do Mestre». Outras «palavras de vénia», de agradecimento pelas oportunidades concedidas, abrangeram o coronel Herculano Galhardo, «sobrinho de Alexandre Herculano e um dos herdeiros do seu espólio».

Esta citação, há quase 90 anos, desvendou a origem e a propriedade dos manuscritos leiloados, pois não existiam filhos do casamento de Herculano com Mariana Meira. Havia sobrinhos. A irmã mais velha de Herculano, Maria da Assunção casara com Eduardo Galhardo. Nos anos 60, Vitorino Nemésio voltou a contatar a família. Procurou José Galhardo, na antiga sede da Sociedade de Autores, para ter acesso ao espólio. Apesar do apoio de um amigo comum Luís de Oliveira Guimarães - tive o privilégio de assistir ao diálogo - os resultados foram infrutíferos. Qual a justificação? A publicação era suscetível de provocar «melindres familiares». Após a morte de José Galhardo, e quando se aproximava – se o centenário da morte de Herculano e Nemésio presidia às comemorações nacionais, fez outra diligencia junto da advogada Maria José Galhardo. Também foi cordialmente infrutífera.


Memória da açoreanidade

Decorridos mais de 40 anos os manuscritos – mas … foram, agora, leiloados todos os documentos que os herdeiros possuíam? -já podem ser consultados. E a correspondência - integral e completa - com Mariana Meira com quem Herculano só viria a casar tinha, então, 57 anos, a 1 de Maio de 1867? É evidente que não se trata de um manancial de inéditos. Nem vão alterar a visão de conjunto registada pela história e a crítica.

A permanência de Herculano nos Açores não foi extensa. Apenas cerca de cem dias e associada a momentos decisivos da história política. Perdura, no entanto, em muitas páginas da sua obra. Mas de todas as memórias ficou uma referência no poema Tristezas do Desterro «Eu já vi numa ilha arremessada/às solidões do mar, entre dois mundos/ vestígios de vulcões que hão sido extintos/ em não sabidos séculos» (…) Pedras que em parte amarelece o enxofre, /que a lava em rios dispersou, deixando/ só dele a cor em lascas arrancadas/das entranhas dos montes penhascosos.»

Viveu, sentiu e evocou alguns dos traços fundamentais da essência da açoreanidade.

Herculano, os Açores e os Açorianos – por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], in Diário dos Açores, 6 de Junho de 2021, p.14 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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