Natália,
sem máscaras – por António Valdemar, in
Revista E
A criação literária e a intervenção política de Natália Correia constituíram sempre um espectáculo: umas vezes as palavras eram macias e aveludadas, outras escaldantes de cólera e sarcasmo Nunca recorreu a máscaras. Foi, orgulhosamente, ela própria
Era uma força da natureza que desejava manter-se na íntegra. Mas só o pôde enquanto a saúde lhe permitiu. Natália Correia queria o impossível: continuar com o porte altivo, imponente, olímpico e a elegância física que faziam parar o Chiado, ou onde quer que passasse. Contudo, os últimos anos foram penosos. Fumar cigarros uns a seguir aos outros e ter apetite devorador para jantares opíparos e ceias pantagruélicas tem o seu preço. As caricaturas do Vasco não foram impiedosas. Um cartunista com força de Vasco podia ter sido muito mais cruel.
Nasceu a 13 de Setembro de 1923, na ilha de São Miguel dos Açores, na freguesia da Fajã de Baixo, próximo da cidade de Ponta Delgada. O País mergulhara na turbulência social, na agitação política e na indisciplina militar. A crise financeira acentuava-se. As sucessivas alterações governamentais, na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, começavam a alastrar na primeira metade do século XX, um dos séculos mais trágicos e mais contraditórios da História. Foi neste quadro que se consolidou e expandiu o fascismo, o nazismo, o salazarismo e o franquismo.
Desenvolveu-se, partir de então, a indomável personalidade de Natália. Pai e mãe entraram em rutura quando tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil. A mãe, Maria José Oliveira, professora primária que assimilou os valores cívicos e culturais da República, adquiriu formação laica e tendências libertárias. Colaborou em jornais e revistas. Frequentou tertúlias literárias e políticas, mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas: Carmen e Natália. Incutiu-lhes os princípios da liberdade, da independência, da solidariedade humana, os valores universais que fundamentam uma sociedade democrática.
O salazarismo arrancara com o patrocínio de um sector decisivo das Forças Armadas, da igreja católica – ferida pelas leis da República – e o contributo do poder financeiro e económico. A instauração da Censura, a vigilância sistemática da polícia política e o apoio incondicional de tribunais especiais, reprimiram a opinião pública e silenciaram os vários setores da oposição. Foi em 1934 que a mãe de Natália e de Carmen se instalou, definitivamente, em Lisboa.
Procurou dar às filhas outros horizontes. «Sendo uma intelectual que não se pôde realizar inteiramente devido ao meio e às circunstâncias – recordou Natália – quis preparar-nos». Entendia que «o desenvolvimento intelectual da mulher corresponde a uma atitude social». «A permanência em S. Miguel, mesmo na cidade de Ponta Delgada, não reunia condições para nos desenvolver». (…) era «um meio muito exíguo». Natália Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Ficou, apenas, com o primeiro ciclo dos liceus.
Mostrou-se refratária aos métodos de ensino. Ela própria o declarou que «não podia aceitar regras impostas de fora: eu é que as tinha de criar». A passagem pelos liceus foi, segundo as suas palavras, de «ave migratória». O problema não se colocava, apenas, em São Miguel. Em Lisboa repetiu-se a mesma situação: os métodos eram semelhantes. A escola não constituía um espaço de formação. O ensino tinha de ser um ato de participação e cidadania, para habilitar os alunos a pensar e a interrogar o mundo.
PRIMEIRAS ASAS
Natália tornou-se, aos 22 anos – no esplendor da juventude – uma figura de Lisboa ligada aos acontecimentos literários e políticos que permaneciam na ordem do dia. Nesta primeira fase – dos anos 40 aos anos 50 – conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Ainda colaborou na Rádio Clube Português. Integrou-se nos círculos da oposição democrática.
Três jornalistas micaelenses, amigos da mãe, que trabalhavam em Lisboa, estimularam as aspirações de Natália. Trata-se de Rebelo de Bettencourt (1894-1969) amigo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, antigo chefe de redação do Portugal Futurista e que se acomodou, depois, a chefiar a redação da Gazeta dos Caminhos de Ferro e da revista Viagem; e o Padre Diniz da Luz (1915-1988) antifascista e exaltado e antigermanófilo tempestuoso, embora redator do jornal A Voz, um dos diários monárquicos, católicos, ultra conservadores, onde se preparou a conspiração para implantar a ditadura militar, em 28 de Maio de 1926 e introduzir, depois, o salazarismo.
Em 1946, Natália, principiou no quinzenário Portugal Madeira e Açores, empenhado na defesa dos interesses das então chamadas «ilhas adjacentes». Chefiava a redação outro amigo da mãe: Breno de Vasconcelos (1909-1993), oriundo do Correio dos Açores, o memorialista do livro A Paz Cinzenta (1979). Colaborou, depois, no semanário O Sol, fundado e dirigido por Alberto Lello Portela, (1893-1949) antigo político e parlamentar republicano e um dos militares que ingressaram nos primórdios da aviação.
Destacou-se com seu irmão, o advogado Raul Lello Portela, nos combates da oposição ao salazarismo. A chefia da redação d’ O Sol era assegurada por Alves Morgado (1901-1980) um outro profissional, conhecedor das regras do ofício. A distribuição de trabalho à redação (inclusive o desporto), nas relações com os colaboradores, nos contactos com a tipografia e na revisão escrupulosa de textos. Tinha a colaboração de grandes nomes, como António Sérgio e Maria Archer que deram visibilidade mediática a O Sol. Acrescente-se: Sérgio vacinou Natália contra o PCP e os outros núcleos marxistas e comunistas.
Natália
falava e escrevia com desembaraço inglês e francês. Escreveu sobre
política nacional e internacional: analisou as consequências da guerra de 1939
a 1945; as diretrizes de Mussolini e
de Hitler, os efeitos do nazismo, os
fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na Europa (e a sua) disseminação
em Portugal, na classe política e militar. Também escreveu sobre
literatura e a arte. Publicou um romance, um livro de poemas e um livro de
reportagem e de crónicas de viagens.
O VENENO DA POLÍTICA
Herdou também da mãe – opositora declarada do salazarismo – o interesse pela política. Até à morte, a política constituiu uma solicitação irresistível: a ânsia incontrolável de possuir informação, em cima da hora, o desejo de partilhar nos debates e a disponibilidade para se embrenhar nas possíveis conspirações, num país repleto dos condicionalismos que se prolongaram até ao 25 de Abril.
Subscreveu as listas do MUD que reclamavam a reposição das liberdades e garantias fundamentais. Envolveu-se na candidatura de Norton de Matos, deslocou-se, expressamente a Ponte de Lima, para entrevistar o General, na sua casa de férias.
Participou, em 1958, na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República, concedendo uma entrevista explosiva ao Diário Ilustrado. Apoiou outros movimentos, entre os quais a ocupação do navio Santa Maria, comandado por Henrique Galvão para acelerar a queda de Salazar e para pôr termo à política colonial. Nas primeiras eleições do consulado de Marcelo Caetano, em 1969, colaborou com Mário Soares e Salgado Zenha, na formação da CEUD, em luta com o MDP/ CDE, que incorporava comunistas e outros radicais de esquerda. Incluindo os chamados «católicos progressistas»
Apesar de toda esta intervenção, ao surgir o 25 de Abril, os dirigentes partidários recearam convidá-la. Era imprevisível e um perigo iminente, em momentos delicados e complexos. Na linhagem das Cantigas de Escarnio e Maldizer, Natália Correia criou as Cantigas de Risadilha, para escarnecer a classe política. Não poupou amigos como Mário Soares e o Partido Socialista: «Já não sei se é país se é orfanato/pois nem vela, nem reza, nem sabá /impede que em berreiro ou desacato / ande tudo à procura do Papá». (…) «Tinha o PS pai. Mas o Marocas / mandou alguns filhotes para o galheiro/ e do partido por trocas e baldrocas, / já não consegue ser o pai inteiro». (….) «nesta lusa farronca sem vintém, / neste muda que muda sem mudança, / venha o que venha, há-de lixar-se quem / do salsifré tiver a governança».
Em termo desdenhoso alvejou Freitas do Amaral: «muito a preceito dos cristãos fervores / do CDS, o Lucas é o retrato / De um menino Jesus entre os doutores / A meter mestre Freitas num sapato». Devido ao insólito mergulho no Tejo e outras peripécias não escapou Marcelo Rebelo de Sousa, o «picareta falante»: «o Marcelo neste mapa / a brincar aos cowboys não há nenhum. / passa rasteira: o mais subtil derrapa; / dá ao gatilho da intriga e faz: pum-pum.» Sempre que podia dissecava o poder político e a rotina social. Zurziu as prosápias de fidalguia; os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os intelectuais e artistas enfatuados, os políticos arrivistas e corruptos. Execrava, ruidosamente, a ignorância e o fanatismo.
O ESCÂNDALO PARLAMENTAR
Estreitou amizade com Francisco Sá Carneiro, ao apadrinhar a aproximação íntima com Snu Abecasis. Assim, só em 1979, por insistência de Francisco Sá Carneiro ingressou na Aliança Democrática. Finalmente, passou a ser deputada pelo PSD. Assumiu, como era de presumir, posições em divergência frontal com a linha de orientação política e religiosa da quase totalidade do PSD e do CDS.
A defesa do aborto deu lugar a uma intervenção de Natália que agitou a Assembleia da Republica. Ficaram célebres os seus versos, ao arrasar o deputado do CDS, João Morgado por ter proferido, no auge do debate parlamentar sobre a legislação sobre o aborto, a afirmação perentória que «o ato sexual é para fazer filhos». Natália não se conteve e escreveu, de jato um poema que circulou, em todo o País, até porque sairia, no dia seguinte, no Diário de Lisboa: «Já que o coito – diz Morgado – /tem como fim cristalino, /preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca, /temos na procriação/prova de que houve truca-truca. / Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/ só usou – parca ração! – / uma vez. E se a função/faz o órgão- diz o ditado-/consumada essa exceção, / ficou capado o Morgado!»
Confirmaram-se todas as apreensões. Nem o PSD lhe renovou o mandato, nem o PS – à frente do qual estava Jorge Sampaio – aceitou a proposta de entrar nas listas. Natália aderiu, então, ao Partido Renovador Democrático (PRD), que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes. Porque nada mais lhe restava, em 1992, cerca de um ano antes de falecer, juntamente com José Saramago e Luís Francisco Rebelo entre outros, integrou a Frente Nacional Para a Defesa da Cultura (FNDC). Foi no segundo mandato presidencial de Mário Soares. Tinha por objetivo denunciar violações à liberdade de expressão, à ausência de pluralidade e diversidade na cultura e exigir uma estratégica para a real democratização do país. Os mal-entendidos e os conflitos reacenderam-se. O projeto extinguiu-se.
O PERCURSO LITERÁRIO
Os primórdios da escrita de Natália Correia aproximam-se, em alguns aspetos, do neorrealismo. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político. Ela própria explicou a sua opção: «Se pus Anoiteceu no Bairro (romance da sua autoria de 1946) à margem, não foi por ter sido escrito numa fase imatura da minha vida, mas porque o entendo inautêntico. Embora o livro corresponda a preocupações ideológicas que mantenho, não estou interessada em fazer literatura programada.» Era da opinião que, entre nós, «se fizera neo-realismo de empréstimo, de segunda mão» (…) «não se agitaram as pessoas e as instituições de forma a tornar visível o lodo depositado no fundo» (…) «Houve o medo» – concluiu – «de se realizar sequer um realismo a sério, porquanto este exige uma descida ao inferno e não vejo por aí quem se atreva além do purgatório». Por isso se afastou do neorrealismo, cortou com a orientação literária e política de escritores portugueses que o representavam, muitos dos quais pertenciam ao Partido Comunista ou estavam próximo dele. Foi ainda mais explícita: «Não podemos competir – insistiu – com os mestres do neo-realismo americano e europeu que, bons ou maus, para quem aprecia o género, já disseram a última palavra».
Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes óbvias. Passou a estar próxima do surrealismo. Já tinha relações pessoais com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Isabel Meyrelles, Alexandre O’Neill, Manuel de Lima, Mário Henrique Leiria e David Mourão Ferreira. Acrescente-se Luís Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de Natália nesta fase literária: Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959) e, mesmo, O Canto do País Emerso (1961).
A propósito da ligação ao surrealismo e aos surrealistas portugueses fez questão de observar: «se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro».
A criação de Natália, sempre avessa a códigos
literários e estéticos verificou-se nos livros de poemas, nos romances, nas memórias,
nas peças de teatro e nos ensaios, nasce e expande-se, em todos os sentidos,
mergulha na complexidade do mundo, umas vezes numa interpelação provocatória,
outras em torno das mais ínfimas e sutis realidades. Em suma, um todo bastante
diverso, mas coeso, nas suas afinidades eletivas.
O ÚLTIMO SALÃO DE LISBOA
Mesmo em vida, Natália Correia já pertencia à História de Lisboa. Residia num quinto andar do número 52 da rua Rodrigues Sampaio, entre a rua de Santa Marta e a Avenida da Liberdade. Ali permaneceu 40 anos, desde 1953 a 1993. Ali faleceu a 16 de Março de 1993, horas depois de chegar a casa, ao regressar do Botequim.
O lendário diretor do Diário de Noticias, Augusto de Castro repetiu, até à exaustão, em livros, discursos e editoriais, que o «ultimo salão literário de Lisboa» fora a casa, em Santa Catarina, de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921). É certo que marcou um tempo cultural, mas cada época tem o seu salão literário.
Na segunda metade do século XX a casa de Natália Correia, entre várias outras, foi um espaço privilegiado de convívio, rodeado de uma fabulosa biblioteca, de notáveis obras de arte e de surpreendentes peças de arte decorativa. A hospitalidade afetuosa conjugava – se com a estatura intelectual dos convidados de Natália, em noites inesquecíveis que avançavam pela madrugada. Durante a passagem por Lisboa ofereceu recepções a Marcel Marceau (que entrevistei, em 1959, ao lado de Natália, para o jornal República); ao poeta russo Ievtuchenko, ao poeta Henri Michaux; e, já no Botequim, ao jornalista e escritor Dominique de Roux, autor do enigmático romance O Quinto Império; e ainda aos escritores americanos Graham Greene e Henry Miller.
VISCERALMENTE AÇOREANA
Ficou sempre agarrada aos Açores. Nasceu, viveu e morreu açoreana. Um dos seus muitos poemas de forte componente insular resume – se nestes versos: «Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./ Recém-vinda de ficada/em morosa maravilha, / sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha».
Num dos seus livros mais emblemáticos, Não Percas a Rosa deparamos sucessivas recordações da infância e da adolescência associadas a memórias gustativas, olfativas e visuais como, por exemplo, o cozido das Furnas sempre com inhames e maçarocas de milho. Desce mesmo ao pormenor: «cozidas na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias». Ficou a ser, por vários motivos e até ao fim, uma ilha dentro da sua própria Ilha.
O BOTEQUIM
Multiplicaram-se as dificuldades financeiras. O marido, Alfredo Machado, um jogador compulsivo, deixou de ter os recursos para manter uma vida aparatosa para Natália possuir em casa um salão – o seu palco doméstico – para recepções faustosas e requintadas.
Em 1971, Natália, com o marido e a escultora Isabel Meyreles fundaram, no largo da Graça, onde existiu em tempo uma carvoaria, um o bar restaurante que lhe permitiu, um novo espaço para voltar a pontificar. Tinha necessidade permanente de espectáculo. Chamava-se O Botequim, um nome que remetia para os cafés e restaurantes de Lisboa, do século XVII, do tempo de Bocage, da implantação do regime liberal e da independência do Brasil.
Rapidamente O Botequim ganhou a maior notoriedade. Existiam (e existem) outros centros de convívio e de conspiração: o Snob, na rua do O Século; o Procópio, nas Amoreiras; o After Eight, na Praça das Flores. Nenhum deles, comparável a O Botequim.
Concentravam-se no Botequim poetas e escritores de várias tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros, presidentes da República. Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores. Incorporou as fases conturbadas do processo revolucionário e contra revolucionário que vivemos na sequência do 25 de Abril.
Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o País. Desencadeara no consulado de Salazar e na «primavera marcelista» duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo, motivado pela introdução e coordenação da Antologia de Poesia Erótica e Satírica (1965). O segundo processo devido à responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas (1972) da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros desencadearam o alarme da Censura e a imediata apreensão da PIDE. Natália foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final.
A presença carismática de Natália pontificou, no Botequim, durante mais de 20 anos. Com a morte de Natália, morreu o Botequim. Revive, contudo, no livro de Fernando Dacosta O Botequim da Liberdade (Lisboa, 2013). Na Fotobiografia de Natália Correia, de Ana Paula Costa (2006) e na extensa biografia romanceada de Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar (2024). Um fato, porém, é incontestável: malograram-se as tentativas de revitalizar o Botequim. Com a morte de Natália o Botequim ficou morto e enterrado.
ELA E SÓ ELA
A memória de Natália perdura na sua obra. Pouco antes de falecer reuniu as poesias completas em dois volumes e com o titulo genérico O Sol das Noites e o Luar dos Dias (1993). Clara Rocha classificou nesta síntese lapidar: «o retrato de uma voz que se modula nos sons da fúria ou da emoção lírica, do riso ou da mágoa, da saudade e da vivência, mas que estremece e livre, resiste, se transforma e transforma».
O nome de Natália encontra-se consagrado em ruas, de Lisboa e dos Açores, em diversas bibliotecas, no reportório musical de Carlos Alberto Moniz e num café de Angra do Heroísmo e com a seguinte lápide: «Quando me derem por morta/ de lágrimas nem uma pinga:/ um trevo de quatro folhas/ tenho debaixo da língua./ Está em regra o passaporte. / Venha o limite de idade/ não me chorem, não é morte/ é só invisibilidade./ Túnel, poço ou espiral/ suga a alma. Fica o corpo./ Vai - se a cópia sideral/ e isso não é estar morto»
As comemorações centenárias
– a realizar de 2023 a 2024 – em Portugal, em França e noutros países vão,
mais uma vez demonstrar que está viva. A criação literária e a intervenção
política de Natália Correia, constituíram
sempre um espectáculo: umas vezes as palavras eram macias e aveludadas, outras
escaldantes de cólera e sarcasmo Nunca recorreu a máscaras. Foi, orgulhosamente,
ela própria ■
Natália
Correia, sem Máscaras – por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da
Classe de Letras da Academia das Ciências], in Revista E (Expresso), 8 de
Setembro de 2023, p.26-32 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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