“Inteligência artificial: desafios e responsabilidades” – por António Valdemar
A inventariação crítica sistematizada por Arnaldo Niskier para o
conhecimento, a avaliação e a extensão de um fenômeno que suscita euforias e
apreensões, até conseguir um equilíbrio dinâmico que resista ao imobilismo
purista e à rendição acrítica.
O último livro de Arnaldo Niskier sobre Inteligência Artificial é
hoje um manancial de informações muito úteis e de reflexões muito oportunas
incluídas no decurso de cem comentários pontuais publicados, desde 2023 até
abril de 2025, em órgãos de comunicação com a amplitude e o estatuto d’O
Globo, Folha de São Paulo e do Correio Brasiliense.
O poder de comunicação de Arnaldo Niskier – confirmado em mais de
cem obras que se repartem através dos setores da educação, do ensino e da
investigação histórica – permite-nos o conhecimento, a avaliação e a extensão
galopante de uma das conquistas irrecusáveis do mundo do nosso tempo. Mas não
deixa também de enumerar as advertências perante os riscos associados à
Inteligência Artificial, tais como a apropriação indevida e indiscriminada da
propriedade intelectual, a propagação de fake news, a ausência de
respeito pelos valores humanos tais como a segurança, a equidade, a
transparência e a privacidade. Os receios, as dúvidas e as objeções que a
propagação da Inteligência Artificial tem levantado, foram expressos por
cientistas eminentes reconhecidos com o Prémio Nobel: John Hopfield e Ginton
Hinton “Se não houver controlo” – disse Hopfield – “pode ocorrer uma
catástrofe”, pois os desafios não se podem resumir a questões de ordem técnica,
mas de natureza antropológica, social e política. Requerem formação ética e um
compromisso de responsabilidade.
Também o Papa Francisco, nos debates desencadeados em junho de 2024, na
reunião da cúpula do G7, que decorreu na Apúlia, manifestou objeções perante a
eventualidade do homem se converter num processo para programar computadores.
“O homem – acentuou o Pontífice – não se pode transformar num algoritmo. O
homem deverá ser o sujeito e não o objeto desta revolução. O resultado
positivo” – concluiu O Papa Francisco – “só será possível se formos capazes de
agir de maneira responsável e de respeitar valores humanos fundamentais”.
Humanismo e civilização tecnológica
Estamos a viver um novo ciclo na história do mundo, cuja população
ascendeu a oito biliões de habitantes e, segundo as estatísticas mais recentes,
há 300 milhões que sofrem de forte depressão, de angústia inquietante, de
crises emocionais inevitáveis. É impossível ficar indiferente às mudanças que
vão surgindo, umas vezes com evidentes benefícios, outras repletas de
contrariedades e incongruências.
Há, sem dúvida, metas a atingir não apenas na área das ciências, da
medicina, da educação e do ensino, da literatura, das artes visuais, da
economia, da justiça, das relações internacionais. Os grandes industriais e
empresários do mundo mostram-se receptivos aos desafios que se multiplicam nos
mais diversos domínios. Contudo, a requalificação profissional, os
reajustamentos legislativos, o combate à fome e às desigualdades sociais e
humanas destacam-se entre as prioridades.
Yuval Noah Harari escritor e ensaísta com os maiores êxitos
editoriais das últimas décadas, refletiu todos estes aspetos, denunciando
arrivismos descarados e manipulações revoltantes, no recente livro “Nexus –
Uma breve história das redes da informação, da Idade da Pedra à Inteligência
Artificial”. Todavia, Isaac Asimov (1920-1992) – um dos mestres da
ficção científica, e divulgação científica, foi mais frontal e conciso ao
pronunciar-se acerca de matérias polémicas de inovação: “Se o conhecimento pode
criar problemas, não é por meio da ignorância que podemos solucioná-los”.
Instituições de renome cultural e cívico como a Academia Brasileira de
Letras e a Academia das Ciências de Lisboa, estão a
acompanhar a utilização imparável da Inteligência Artificial. Nesta
conformidade, a Academia Brasileira de Letras decidiu confiar a Arnaldo
Niskier a presidência da Comissão de Lexicologia e Lexicográfica. Duas
vezes presidente da Academia e com um currículo a vários títulos notável, Arnaldo
Niskier já introduzira, em 1986, um banco de dados extensivo em todos os
sectores da Academia.
Recorde-se, entretanto, que Arnaldo Niskier logo no discurso de
posse, em 1984, declarou peremptoriamente: “Sempre houve uma componente técnica
na natureza humana, da mesma forma que sempre coexistiram o instrumento e a
linguagem. Se fosse necessário estabelecer uma ordem de precedência, diríamos
que o humanismo, no que ele representa de espírito perquiridor, de busca do
ideal da realização humana, precede a técnica, pois a ferramenta procede da
palavra, do pensamento, da criação. O que se busca” – ponderou ainda Arnaldo
Niskier – “é uma nova síntese que supere os antagonismos entre humanismo e
civilização tecnológica. Nem o humanismo é um fim em si mesmo, contemplativo e
estático, nem a civilização tecnológica deve subjugar o homem com suas ofertas
desmedidas e, às vezes, desnecessárias”.
Cooperação entre as duas Academias
Idênticas funções estão a ser exercidas na Academia das Ciências
por Ana Salgado, lexicógrafa e investigadora nas áreas das Ciências da
Linguagem e das Humanidades Digitais. Líder do projeto de revisão da norma ISO
1951: 2007; colaboradora do grupo DARIAH-EU Working Group Lexical Resources.
Colíder do WG1 da CA22126 – European Network On Lexical Innovation
(ENEOLI).
O percurso de Ana Salgado, começou no departamento de Dicionários
da Porto Editora, onde liderou vários trabalhos de referência. Atualmente,
coordena os projetos lexicográficos da Academia das Ciências de Lisboa,
onde, desde 2023, é presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da
Língua Portuguesa (ILLP). É ainda uma das editoras incumbidas da publicação
do Thesaurus de Ciências da Terra, coordenado por Manuel Lemos
de Sousa, catedrático da Universidade do Porto, académico efetivo e membro
do Conselho Científico da Academia das Ciências.
A cooperação de ambas as Academias é urgente e é necessária. Tanto mais
que a interação do Gemini Live – em vias de se tornar o cérebro dos
smartphones. – pode ser feita em dez idiomas, entre os quais a língua
portuguesa. As interrogações são pertinentes: em que medida os desenvolvimentos
da inteligência artificial são suscetíveis de atingir e desvirtuar a estrutura
da língua (portuguesa, francesa, inglesa etc.)? Corre–se o risco de perder o
cunho de identidade? Como reagir em face de possíveis alternativas para
incorporar as inovações no idioma falado e, sobretudo, no idioma escrito?
O excesso de zelo dos puristas
A defesa e valorização da língua portuguesa não podem resvalar no excesso
de zelo dos puristas horrorizados com a introdução crescente dos francesismos e
anglicismos. Um dos exemplos tristemente célebres é o livro “Rol de
Estrangeirismos”, da autoria do professor Francisco Júlio Martins
Sequeira, publicado no auge do salazarismo. Tinha por finalidade ser uma
“obra de consulta fácil e de fácil manuseio, uma como cartilha para servir a
quantos, desejosos de falar ou escrever em português de lei, procurem um guia
adequado e de intentos seguros. Era ainda mais categórico. Destinava-se a
“escorraçar, por sadio nacionalismo e por brio próprio, (...) os termos
espúrios, desnecessários, impertinentes, anti-portugueses”.
Entre as inúmeras propostas sugeria: em vez de boxeur, murrista ou
socador; de camionete, galera ou autocarroça; de cassetette, porrete ou
cacheira; de croissant, meia lua; de derrapagem, escorregamento; de embraiagem,
engate ou engranzagem; de hangar, telheiro ou trapiche; de toilette, atavios ou
afeitamento; de mayonaise salgalhada ou mistifório. Da lista interminável
menciono ainda: em vez de chutar, pontapear; de jazz-band, banda de pretos ou
banda esquipática; de smoking, jaqueta; de WC (water closet) privada, sentina
ou latrina; de cocktail, cacharolete e de John Bull, João Touro.
Em cada uma destas alternativas estamos confrontados com o ridículo e o
absurdo. A inventariação crítica, sistematizada por Arnaldo Niskier no
livro sobre “Inteligência Artificial Hoje”, cumpre a função de esclarecer o
leitor sobre o rumo a seguir em matéria de língua portuguesa, num tempo marcado
pelos avanços e os desafios da Inteligência artificial.
A competência do filólogo
Compete ao filólogo – ensina Antônio Houaiss – a defesa da sua
língua natal, o estudo científico das outras línguas; a análise crítica das
variantes, a organização de edições críticas para fixar a coisa significada.
Prémio Nobel da literatura em 1956, o poeta espanhol Juan Ramon Jimenez
(1881-1958), escreveu este poema que aprofunda a genealogia da palavra:
“Filologia, dá-me/o nome exato das coisas. / Que a minha palavra seja/a própria
coisa/ criada pela minha alma novamente!/ Que por mim cheguem todos/ os que não
as conhecem, às coisas. / Que por mim vão todos/ esses que as amam, as coisas.
/ Filologia, dá-me o nome exato/ e teu e seu e meu das coisas.“
Perante a evolução natural e irrecusável de qualquer língua, em vez de
temer a inovação, as Academias e a sociedade devem molda – lá, encontrando um
equilíbrio dinâmico que resista ao imobilismo purista e à rendição acrítica.
Assim, poderá garantir que a Inteligência Artificial sirva o homem e que a
língua portuguesa, em toda a sua diversidade, continue a ser, em cada país, um
instrumento de identidade e diálogo plural.
“Alexandre O’Neill
Precisa-se” – por António Valdemar [Jornalista, carteira profissional
número Um; sócio efetivo da Academia das Ciências; sócio correspondente da
Academia Brasileira de Letras], in Jornal de Letras, n.º 308, Setembro2025 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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