sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

TÁCITO – ANAIS


LIVRO: Anais [trad. de José Liberato Freire de Carvalho];
AUTOR: Tácito;
EDIÇÃO: Colibri [pref. Nuno Simões Rodrigues; Introdução de Ricardo Nobre]


“Talvez seja mais estimulante para o leitor moderno perceber que Tácito o ensina a compreender como Roma conduziu a sua política, interna e externa, administrou as suas províncias (Bretanha, Germânia, Panónia), assegurou a expansão militar.

É dele o relato das grandes revoltas dos exércitos no primeiro século da nossa era, dos funerais de Germânico, das mortes de Cláudio, de Britânico e de Agripina, do grande incêndio de Roma e consequente perseguição dos Cristãos, das mortes de Séneca e de Petrónio, decorrentes da conjura de Pisão para derrubar Nero.

Em suma, a história de Roma, do Reino Unido, da Alemanha, da Áustria, da Hungria, dos Judeus, do Cristianismo e do Próximo Oriente não pode ser escrita sem a obra de Tácito” [AQUI]

(…) Submetido a múltiplas exegeses ao longo dos séculos, a obra de Tácito, e em particular os Anais, foi e é examinada e comentada de diversas perspectivas: as de maior relevo dizem evidentemente respeito à história de Roma e das suas instituições, enquanto a filologia se tem ocupado com a análise da sua forma de escrever, escrutinando a sintaxe e a semântica que configuram um estilo tão diferente do de Cícero ou César, modelos comummente preferidos nas gramáticas da língua latina. Cobrindo interesses tão alargados, no âmbito da história militar, ciência política, ética, antropologia, etnologia, direito, estudos de género, pós-coloniais ou da literatura, Tácito tem sido um objecto de estudo valioso. Artigos, teses, monografias e ensaios iluminam o leitor sobre ideias políticas (em particular a liberdade e a corrupção), processos de construção e organização narrativa, a disposição da matéria histórica, dando atenção às narrativas de mortes, batalhas, doenças, presságios e conspirações; estudam-se, ainda, em Tácito a ironia, a metáfora, a ordenação sintáctica, as ideias militares, a profundidade psicológica na concepção de personagens individuais (imperadores, escritores, filósofos, mulheres, escravos) ou colectivas (o exército, o povo e o senado, por exemplo); a sua obra revela relações entre historiografia, retórica, tragédia e epopeia, realçando-se nela momentos de natureza meta-historiográfica para descrever o autor como austero ou sentencioso; como historiador, é defendido e atacado, fiel à realidade ou manipulador da verdade. Tal como outros autores antigos com algum peso cultural, este estado da arte sumário é o culminar de um processo de saturação de leituras realizadas ao longo de séculos. Na verdade, e independentemente do material produzido pelas universidades, talvez seja mais estimulante para o leitor moderno perceber que Tácito o ensina a compreender como Roma conduziu a sua política, interna e externa, administrou as suas províncias (Bretanha, Germânia, Panónia), assegurou a expansão militar (…)

Continuando o cargo de fornecer à doutrinação liberal um fundamento histórico dos ideais perfilhados, José Liberato Freire de Carvalho compôs, de 1830 a 1834 uma obra que havia de publicar entre 1841 e 1843, em quatro volumes: Memórias com o Título de Anais para a História do Tempo que Durou a Usurpação de D. Miguel (Lisboa: Impr. Nevesiana). Como o título sugere, a obra descreve os acontecimentos ano por ano, de 1829 a 1834, em clara analogia com os Anais, de Tácito, autor que, aliás, tutela a obra, pois dele é a epígrafe, retirada das Histórias 1: Opus aggredior opimum casibus («componho uma obra rica de infortúnios»).  Anotando as semelhanças verbais com a obra de Tácito, cita-se parte do texto prefacial, em que, defensor intransigente da liberdade, Freire de Carvalho (1841: 7-10) anuncia abertamente os seus propósitos:

Proponho-me narrar os factos principais de uma época a mais desastrosa que tem visto Portugal; e, como Tácito, tenho que referir casos atrozes, crimes inauditos, e misérias e desgraças espantosas. Entre os crimes, uma usurpação vergonhosa e infame por todas as baixezas, por todas as intrigas, e por todas as violências que se podem imaginar; e entre as desgraças, essa mesma usurpação coberta de todos os horrores, e de todas as infelicidades, filhas e companheiras de um poder absoluto usurpado, que, para manter-se, julgou que só o podia fazer, tornando-se bárbaro, feroz, e brutal. Direi como a santidade do juramento e a honra da lealdade foram convertidas em crimes, e atrozmente punidas como gravíssimos delitos. Direi como o perjúrio e a deslealdade receberam as honras e o culto das virtudes; e como até houve sacerdotes ímpios e blasfemos que apregoaram, e sancionaram esta moral depravação. Direi como, para manter este sistema de horrores e de crimes, se violaram as mais santas leis da razão e da justiça; como em nome delas se cometeram os actos mais abomináveis; como estes foram ainda enegrecidos pela ferocidade dos insultos que se fizeram às vítimas; e como, por último excesso de uma desnatural fereza, se viram mulheres portuguesas de elevada condição fraternizar com os assassinos e com os algozes, e aplaudir, como Bacantes, as cenas de sangue, de horror e crueldade. E direi ainda enfim, como a influência estrangeira, e particularmente a britânica, apoiaram ora clandestinamente ora às claras, e sem pejo, todos os crimes, todos os delírios, e até toda a brutalidade do tirano usurpador, e seus sicários, e seus cúmplices […]

[Ricardo Nobre, in Introdução, p. 23 e 30-31]

J.M.M. 

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