[Uma leitura da biografia
de António Barreto atenta aos pontos de contacto com uma série de figuras
criadas por Eça pode ser discutível, mas tem a vantagem de alertar para a
necessidade de qualquer autor de uma narrativa conseguir controlar melhor os
vários sentidos da sua prosa. O inventário das banalidades que resulta da
leitura desta obra é extenso. Melhor seria se a autora tivesse cortado aquilo
que vem à baila numa conversa oral, mas que se afigura pouco relevante numa
narrativa biográfica]
► “A biografia de António Barreto (AB) escrita por Maria de Fátima
Bonifácio (MFB), uma experiente historiadora de ofício, ocupa 527 páginas,
divididas em 24 capítulos, que correspondem a duas partes distintas. Na primeira,
o biografado é visto como actor político, narrando-se o seu meio familiar,
educação com entrada na Universidade de Direito de Coimbra, fuga à tropa com
exílio na Suíça, regresso a Portugal em 1974, relações com o PS e Mário Soares,
passagem pelo Ministério da Agricultura no I Governo Constitucional (1976-78),
retirada da política activa aos 49 anos e actividade de comentador político na
televisão e nos jornais, etc. A segunda parte é dedicada ao exame das
principais ideias daquele que se toma por objecto, com base numa leitura das
suas publicações mais relevantes. No seu conjunto, o género biográfico é aquele
que corresponde melhor ao projecto de uma história narrativa, tal como tem sido
defendido e praticado pela autora em vários livros sobre políticos do século
XIX: Costa Cabral, Duque de Palmela e Rodrigo da Fonseca Magalhães.
Na base deste trabalho estão 17 entrevistas, realizadas entre
2013 e 2015, que irão ser depositadas para consulta na instituição pública de
investigação em que ambos, biógrafa e biografado, trabalharam durante décadas.
As fontes de MFB são também constituídas pelos livros, artigos e discursos da
autoria de AB. Assinalável é o cuidado com que MFB distingue – através de um
sistema de aspas – a voz do biografado e as suas próprias opiniões. Uma
distinção importante, uma vez que é assumida a proximidade, em termos de
relação de amizade, de dois colegas de investigação e de uma superlativa
admiração que MFB nutre por AB.
Mais difícil de entender é o facto de esta biografia, nas
palavras da sua autora, surgir como “livro não autorizado”, com base no
argumento de que AB se limitou a conceder as entrevistas e, depois, a corrigir
alguns factos ou datas. Ou seja, AB não interveio, nem condicionou a autora.
Ora, é justamente por se apresentar com o rótulo de biografia “não autorizada”
que este livro coloca, desde logo, muitas reservas. Para merecer tal estatuto,
deviam ter sido consultadas outras fontes e recolhidos mais depoimentos, pelo
menos os daqueles que se cruzaram ao longo da vida com AB e com ele conviveram.
A prova, o recurso ao contraditório, o cuidado para não repetir e sublinhar,
por via analítica, as auto-representações do biografado são instrumentos de que
nenhum biógrafo pode prescindir, mesmo quando reivindica para si, repetidas
vezes, a liberdade de narrar. Tivesse Barreto escrito as suas memórias (por
exemplo, sob a forma de entrevista ou de autobiografia tout court), já o
estatuto deste livro não levantaria esse tipo de dúvidas. Mas, nesse caso,
diga-se, teria de concorrer com as autobiografias de Rosado Fernandes e João
Freire, escritas num estilo claro e enxuto, difícil de ultrapassar, sobretudo a
primeira mais irónica, sendo a segunda de grande simplicidade, transparência e
riqueza de informação.
Ainda a propósito do cruzamento de fontes, o leitor fica sem
perceber, na crucial passagem de Barreto pelo Ministério da Agricultura – “a
grande oportunidade da minha vida política”, segundo AB (p. 188) – , quais eram
os pontos de vista dos seus colaboradores mais próximos. Nem o nome do seu
Chefe de Gabinete é referido, tão-pouco o seu testemunho mencionado. A
narrativa acerca da Lei Barreto é reduzida a um quadro onde AB se confrontou
com as posições do antigo ministro da mesma pasta, Oliveira Baptista, e na sua
esteira com os fretes feitos por Lopes Cardoso ao PC; mais tarde, com a saída
do governo de AB, a mesma lei foi denunciada por Mário Soares, que a considerou
mal feita. De resto, a sua formulação surge no livro completamente desinserida
de um quadro onde muitos agrónomos e especialistas em economia rural tinham
opinião – Henrique de Barros, Castro Caldas, Afonso de Barros, Francisco
Avillez, Gomes da Silva, Sevinate Pinto, etc. Em lugar de descrever o contexto
e procurar reconstitui-lo através de diferentes testemunhos, a autora limita-se
a uma banal e genérica troca de opiniões entre AB e MFB sobre os limites da
decisão política: “o poder de transformação da sociedade é muito reduzido”,
sustenta o primeiro, acabando a autora por responder com a pergunta, mais ou
menos retórica, “que tipo de líder se poderá elevar acima delas [limitações] e
visionar a transformação da sociedade?” (p. 189).
Aliás, o inventário das banalidades que resulta da leitura desta
obra é extenso. Melhor seria se a autora tivesse cortado aquilo que vem à baila
numa conversa oral, mas que se afigura pouco relevante numa narrativa
biográfica. Quatro exemplos, de uma vasta série. Primeiro, seria dispensável a
referência aos pintores italianos do Renascimento, vistos em reproduções na
infância e que, ainda hoje, motivam o gosto pelas visitas de AB a “cidades
estrangeiras para ver certos quadros” (p. 29). É que também o polaco G.
Cornuski, professor e crítico que escrevia na Revista Suíça, com o qual
Fradique Mendes se correspondia, se deixava esmagar pelo sublime frente às
telas de Ticiano (que MFB, na sua vasta cultura geral, cita com apelido e tudo
– Ticiano Vecellio).
Depois, sem sair das comparações com esse mundo tão irónico
quanto sardónico de Eça, talvez valesse a pena repensar uma das tensões que
atravessa este livro: a preocupação com a nação, com Portugal e os seus problemas,
em contraste com a sua ‘irrelevância’ ou pequenez quando visto a partir do
estrangeiro (pp. 38, 107, 117). Sobre esta questão, há uma passagem que merece
destaque, quando MFB diz que AB ‘pensou em naturalizar-se suíço, para
transformar o país de exílio numa segunda pátria’ (p. 118). É que também a
Fradique Mendes ocorreu o mesmo pensamento, quando sentiu vontade ‘em se
nacionalizar nas terras alheias’.
Uma terceira banalidade surge quando MFB regista que, desde o 28
de Setembro de 1974, se tornou “cristalino para António Barreto‘ que o PC 'quer
tomar conta da situação’; que o ‘PS, ou uma parte do PS, vai consentir’” (p.
123). Terá AB sido mesmo o único a constatá-lo? Creio que não, pois essa foi
uma ideia partilhada por muitos. E como pode o papel da extrema-esquerda ficar
de fora da referida visão cristalina? Não será isso o resultado de um
anticomunismo feroz apenas preocupado com o PC e que, por isso mesmo, não
presta atenção às outras esquerdas mais radicais?
Por último, não menos banal é apresentar o estatuto académico de
AB como uma espécie de “apêndice curricular” (p. 211). Ao trivializar um dos
proventos de AB – que de tão banal passa a funcionar como um acessório – , a
afirmação acaba por ser chocante nos tempos que correm, em que uma nova geração
extremamente bem preparada não tem condições para prosseguir uma carreira de
investigação. Pior ainda é que tal constatação vem acompanhada, no livro, de
uma celebração dos “anos dourados” da instituição académica que acolheu AB,
onde “reinava total liberdade e independência do espírito” (pp. 403-404). É
que, não se esqueça, AB ali trabalhou durante mais de um quarto de século,
porventura em regime de dedicação exclusiva. A liberdade para fazer o que bem
lhe aprouvesse – num quadro de liberalismo suportado pelo Estado –, foi-lhe
concedida pela tranquila estabilidade do orçamento, com o objectivo de
proporcionar condições para a pesquisa e obra que lhe correspondesse.
[CONTINUA]
Uma história mal contada ou a teoria do
apagão – por Diogo Ramada Curto, jornal Público / Ípsilon, 3 de Junho de 2016, p.24-26 – com sublinhados nossos.
[J.M.M.]
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