“Vergílio Ferreira ou Portugal por dentro” – por António Valdemar, in Público
Portugal, a sua história e a sua memória foram objeto de
abordagem, reflexão e comentário de Virgílio Ferreira, cujo centenário do
nascimento está a ser assinalado, com debates em torno da sua obra. Fez a
anotação cronológica do tempo vivido. Foi direto, frontal e controverso.
Registou afetos e aversões que nele se mantiveram até ao fim e retrataram o seu
modo de ser. Ensimesmado. Inquieto. Hesitando. Morrendo. Vivendo.
A memória polémica dos dias constitui o cerne das duas séries da Conta
Corrente. O primeiro tomo começa a 1 de Fevereiro de 1959. Fizera 53 anos.
Prolongou – se em nove volumes até Dezembro de 1992. Tinha coisas mais
importantes para escrever? Já dissera tudo? Estava com 76 anos. Faleceu em 1996
com 80 anos. Seguiu a advertência de Dostoiewski: os «quarenta anos são a idade
em que quase toda a gente se confessa. E travou a mesma luta de Sartre, outro
dos seus mestres, ao sentir a urgência de «dizer a verdade», «o (sonho) de todo
o escritor ao entrar na velhice». Se for publicada a correspondência com Lima
de Freitas, Luís Albuquerque, Costa Marques, Mário de Sacramento, Eduardo
Lourenço serão esclarecidas muitas posições que assumiu e não assumiu. A
verdade possível ficou nas cartas aos amigos mais próximos.
Nas várias fases da criação de Vergilio Ferreira elegeu temas
que vão perdurar no seu universo e que, de um modo ou de outro, se multiplicam
na Conta Corrente. Não se reduzem, apenas, ao círculo familiar, aos
conflitos pessoais, às querelas literárias, à oposição a Salazar e ao
Salazarismo, a Marcelo Caetano e aos seus acólitos. A guerra aberta a Vasco
Gonçalves e ao gonçalvismo. O apoio a Mário Soares na liderança do Partido
Socialista e ao exercer a Presidência da Republica. Distinguiu – o com as
maiores honras. Apesar disso, Virgílio Ferreira adotou uma reserva sistemática.
Outra coisa não era de esperar. Tinha a amargura de quem vive quotidianamente dececionado
e surpreendido por fatos consumados.
Assim se pronunciou acerca do comportamento individual e
coletivo, dos portugueses, numa visão genérica, em vez de se ocupar de cada
região, como fez Oliveira Martins (Joaquim Pedro) na introdução da História
de Portugal a propósito das singularidades que se verificam nas populações
do Minho ao Algarve, de Trás os Montes ao Alentejo. Procurou formular ideias
próprias. Tentou aproximar – se dos ensaios de Eduardo Lourenço, a Psicanalise
Mítica do Destino Português, no Labirinto da Saudade para interpretar
fatores de identidade. Todavia, não atingiu a dimensão de Eduardo Lourenço, ou
do próprio Vergílio Ferreira nos ensaios que reuniu em Espaço Invisível.
“Portugal desde que começou a pensar-se – escreveu Vergílio
Ferreira, numa indagação das raízes e vicissitudes – pensou-se sempre, não em
função dele próprio mas em função dos outros; não em função do que devia pensar
de si, mas do que julgava que os outros pensavam dele e do que ele de si
pensava. Assim, a nossa individualidade nunca se confrontou consigo própria mas
com a individualidade alheia. A nossa bazófia congénita vem da necessidade de que
se repare em nós. Como não construímos nada, valemo-nos da farófia para
compensar e assim salvarmos alguma coisa. Julgamos confusamente que a
pesporrência é um direito legítimo de quem fez coisas"
Ao inventariar defeitos e virtudes incidiu sempre nos defeitos:
“Nós inventamos esse direito para parecer que também fazemos. Há uma expressão
popular que diz: «arrota, pelintra». Nós, da abundância, temos só o arroto.
Usamos um vestuário espampanante, mas não usamos roupa interior nem nos
lavamos. E todavia estar a dizê-lo é colaborar ainda na nossa degradação. Nós
não sabemos ter respeito por nós próprios - mas que fazer?".
Observou, de imediato: «Pensar Portugal é pensá-lo no que ele é
e não iludirmo-nos sobre o que ele é. Ora o que ele é a inconsciência, um
infantilismo orgânico, o repentismo, o desequilíbrio emotivo que vai da abjeção
e lágrima fácil aos atos grandiosos e heroicos, a credulidade, o
embasbacamento, a difícil assunção da própria liberdade e a paralela e cómoda
entrega do próprio destino às mãos dos outros, o mesquinho espírito de intriga,
o entendimento e valorização de tudo numa dimensão curta, a zanga fácil e a
reconciliação fácil como se tudo fossem rixas de família, a tendência para
fazermos sempre da nossa vida um teatro, o berro, o espalhafato, a desinibição
tumultuosa, o despudor com que exibimos facilmente o que devia ficar de portas
adentro, a grosseria de um novo-rico sem riqueza, o egoísmo feroz e indiscreto
balanceado com o altruísmo, se houver gente a ver ou a saber, a inautenticidade
visível se queremos subir além de nós a superficialidade vistosa, a
improvisação de expediente, o arrivismo, a trafulhice e o gozo e a vaidade de
intrujar com a nossa «esperteza saloia», o fatalismo, a crendice milagreira, a
parolice".
Faltava, contudo, o outro lado da moeda: “Decerto, temos também
as nossas virtudes. Mas, na sua maioria, elas têm a sua raiz nestas misérias.
Pensar Portugal? Mas mais ou menos todos sabemos já o que ele é. O que importa
agora é apenas pensá-lo – ou seja, pôr-lhe um penso…” Não resistiu a
acrescentar que Portugal, no contexto europeu e universal é “um apêndice da
sarrabulhada mundial”.
Era irreprimível a descarga de azedume. Mas foi tão intensa que
tentou reconsiderar: ”Releio o que escrevi e sinto-me desgostoso. Eu não queria
«dizer mal» do meu país, como os homens de 70 que, nesse dizer mal, compensavam
o seu complexo de não terem nascido lá
fora. O meu destino quer - o
totalmente cumprido cá
dentro. Tenho ao meu país um amor raivoso e infeliz». Ainda
sobre Portugal e os portugueses, Vergílio Ferreira que, durante 40 anos
lecionou Os Lusíadas, fez questão de acentuar:
“A pátria, em momentos difíceis, descobre-se que existe. Mesmo a do vivório e
da retórica. Existe. A retórica não se dá por ela, se trabalha a temperatura
alta”.
Tudo isto reflete muito da visão de Eça de Queiroz, desde Uma Campanha Alegre e O Crime
do Padre Amaro até à Ilustre Casa de Ramires e A
Cidade e as Serras. Ao indicar obras e autores que contribuíram para a sua
formação intelectual citou Espinosa, Kant, Sartre, Caldwell, Steinebeck, Óscar
Wilde, Jorge Amado. Menciona, noutros livros, Malraux e Heiddeger. Faltou Eça
de Queiroz, que Vergílio Ferreira leu e dissecou para a tese de licenciatura na
Faculdade de Letras de Coimbra. Muitos anos depois, em plena efervescência do
PREC, confessou: “De vez em quando releio, uma página do Eça. E é sempre o
mesmo encantamento, a mesma vibração misteriosa da «palavra». Ninguém como ele
– concluiu – conheceu as ocultas ressonâncias da língua».
Mas, além de Eça, herdou o pessimismo de Oliveira Martins e de
Antero; a contundência de Fialho, os pasmos e abismos de Raul Brandão. Contudo,
nunca leu Gervásio Lobato, a grande farsa da Lisboa
em Camisa, as comédias
de André Brun ou as diatribes de José Vilhena, a quem Rui Zink consagrou um
estudo, no âmbito da Universidade de Lisboa. Também João Pedro Jorge já
apresentou outra tese universitária acerca de Luís Pacheco e com o título
provocatório Puta Que Os Pariu.
Houve em Vergilio Ferreira – e continua a haver em muitos outros
intelectuais – relutância em avaliar a literatura marginal de contemporâneos e
admitir que têm intuições que se aproximam da análise antropológica, por exemplo,
nos ensaios de Adolfo Coelho e Jorge Dias. Todavia,
Vergílio Ferreira assim como outros académicos – com os clássicos é obrigatório...
– conheceram e aprofundaram as farsas de Gil Vicente que denunciam tendências
inveteradas no povo português.
Os vários tomos da Conta Corrente de Vergílio Ferreira
colocam-nos perante o homem e o escritor possuído – como afirmou Eduardo
Lourenço – de «um niilismo criador», de um humanismo trágico» e da perturbação
do «homem que suporta angustiadamente o desafio da finitude». Será difícil
caracterizar melhor todo um percurso com direito a Nobel da Literatura. Em
muitas páginas de Conta Corrente confrontamo-nos com ajustes de
contas com gente medíocre, espuma de vulgaridades mas, de vez em quando, somos
agarrados por reflexões que procuram comunicar um Portugal visto por dentro, na
contiguidade da sua relação contemporânea e na amplitude da sua intemporalidade
histórica
Vergílio Ferreira ou Portugal por dentro –
por António Valdemar, [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], jornal
Público, 26 de Setembro de 2016, p.46 – com sublinhados
nossos.
J.M.M.
Sem comentários:
Enviar um comentário