domingo, 21 de fevereiro de 2021

O PADRE QUE ENSINAVA RUSSO



(Uma das edições da Livraria Cunha, de Coimbra, em 1931)

Num tempo em que a PIDE tinha como principal objectivo combater o comunismo, bem alicerçado, aliás, no discurso de Salazar, de 28 de Janeiro de 1934, em que este afirmara que o comunismo era “a grande heresia da nossa idade”, um cartaz numa montra da baixa da cidade de Coimbra, publicitando o ensino da língua russa, não podia passar despercebido.

E não passou. O informador Inácio, em relatório datado de 7 de Dezembro de 1947, comunicava à PIDE que estava afixado na montra da Livraria Cunha, desde a noite anterior, o dito aviso. Estivera ali afixado durante todo o dia, um pouco de lado, meio oculto pela porta, mas tinha a indicação da tipografia onde fora executado, segundo o informador.

Dois dias depois, o padre Manuel Augusto Rodrigues Esteves, também professor no Seminário de Coimbra e ali residente, com 35 anos de idade, responsável pelo pequeno cartaz sobre o ensino de língua russa, estava sentado na delegação da PIDE daquela cidade, perante o chefe Manuel Nogueira Branco e o agente Júlio Cunha, a responder a um Auto de Declarações.


(Revista Portuguesa de Filosofia, de 1964, sobre o Instituto de Filosofia Beato Miguel Carvalho e o seu 30º aniversário.)

O padre Manuel Esteves tinha aprendido russo quando estudava Filosofia no Instituto de Filosofia Miguel Carvalho, em Braga, e corrigido a pronúncia quando estudou Teologia em Valkenburg, Holanda, dominando igualmente o alemão. Sendo professor no Seminário, já dava aulas particulares de russo a dois alunos universitários “da sua confiança”. A sua ideia era tirar alguma vantagem económica com as aulas de russo. Assim, afixou alguns cartazes pela cidade, obviamente nas condições legais. Pedira a um seu amigo (José Lobo) para lhe tratar do assunto e, seguindo a lei, este dirigiu-se à Câmara com 12 cartazes para a respectiva fiscalização e pagamento, recomendando o padre ao seu amigo que, se lhe parecesse necessário, se dirigisse também à Polícia. Mas, como na Câmara não levantaram qualquer dificuldade, julgou que tudo estava de acordo com a lei. Afirmou também à PIDE que os cartazes tinham a indicação de “inscrições individuais severamente condicionadas ao abrigo da lei”, tendo com isso em vista, segundo o padre, o carácter severamente apolítico de tais lições particulares.

Logo apareceram interessados e o padre expressou-lhes as condições rigorosamente apolíticas de tais lições e que logo as suprimiria, caso houvesse sinais de segundas intenções por parte dos alunos.

Pedindo desculpa pelo trabalho que deu à Polícia, o padre comprometia-se a retirar os cartazes e a parar com as lições, caso não existisse confiança, por parte da Polícia, de que a sua intenção era a de que se conhecesse a cultura e as riquezas do mundo eslavo e que o comunismo estava à margem de tudo isto. Aliás, o padre afirmava que já tinha publicado na revista Brotéria, alguns artigos anti-socialistas e anti-comunistas. De resto, interessava-se unicamente pela Filosofia e pela Teologia, vivendo à margem de “ilusões políticas”, mas apreciando e respeitando o Estado e a “nossa ideologia nacional”.

Enfim, o padre Manuel Esteves defendeu-se como pôde.


(Alberto de Oliveira Vilaça)

O pior foi quando lhe perguntaram quem eram os seus alunos (e as suas moradas). A saber: Joaquim de Sousa Castro, Domingos da Costa Gomes, José Magalhães Simões Freire, Alberto Vilaça, Antero Urbano, José Albuquerque de Sousa, Eduardo Crespo Saraiva, António Afonso Amaral, Ricardo Quadrado, Mário Branco e Armando Nunes Reis. Ou seja, todos eles, nomes sobejamente conhecidos da oposição ao regime em Coimbra, nomeadamente no meio estudantil, fazendo parte ou apoiando as comissões universitárias do MUD Juvenil, naquele ano de 1947, e, pelo menos uma parte deles, perfeitamente referenciados pela PIDE e pelo informador Inácio, nomeadamente os primeiros quatro nomes atrás referidos!




(Processo de Alberto de Oliveira Vilaça, na PIDE)


(Processo de José Magalhães Simões Freire, na PIDE)

Publicado originalmente na edição em papel do Jornal Terras de Sicó

Paulo Marques da Silva


Sem comentários: