Uma
das figuras cimeiras do movimento intelectual libertário português foi o sábio
cientista Aurélio Quintanilha (1892-1987). A filiação de Quintanilha na
corrente anarquista é por demais conhecida, não podendo ser desautorizada nem omitida,
como foi o caso que iremos citar.
Acontece
que Aurélio Quintanilha foi na página do Facebook dos Antifascistas da Resistência muito biograficamente maltratado: omissão total da sua condição de
anarquista. E, pasme-se, a resposta dada pelo impressionado administrador da
página a um leitor que lhe autopsiou a biografia, questionando a não alusão à militância
libertária do célebre intelectual libertário, foi de um miserabilismo grosseiro
e arrogante, espantosamente deslocada e inaceitável vindo de uma pagina que é um
dos mais importantes espaços biobibliográficos, digitalmente ao nosso dispor. A
ignorância e a falta de humildade intelectual - quando se é confrontado com
justos reparos biobibliográficos (sempre bem-vindos em todas as situações) - é,
por vezes, muito atrevida, como nos parece ser o caso.
No
que diz respeito a recomendáveis fontes biobibliográficas que o putativo
administrador da página displicentemente sugere para se assegurar da qualidade
libertária do prof. Aurélio Quintanilha, pois elas são tantas que incomoda o curioso
pedido e nos enche de tédio. Porém, porque a página do FB pertence (também) à
Helena Pato, por quem nutrimos especial admiração, aqui deixamos o nosso reparo
e a nossa brevíssima anotação á questão colocada em torno da militância
anarquista de Aurélio Quintanilha.
Saúde
e Fraternidade!
Aurélio Quintanilha (1892-1987) foi cientista, investigador, professor, pedagogo (fundador da
Universidade
Livre de Coimbra), libertário e maçon [o irmão Brotero, iniciado, em 1925, na loja de Coimbra, A
Revolta, e depois (Dezembro de 1931) um dos fundadores da loja maçónica
de Coimbra, Construir - com, e entre outros, Tomás da Fonseca, Alberto
Martins de Carvalho, César Abranches,
Firmino da Costa, Raul Miranda].
Se tivermos o cuidado de ler Quintanilha, ver-se-á que as suas propostas educacionais e
pedagógicas e a vertente pedagógico-libertária que sempre distinguiram as suas conferências
[ver, p. expl., Educação
de Hoje, Educação de Amanhã (1921),
a conferência inaugural (5 de Fevereiro de 1925) da Universidade Livre de
Coimbra ou idêntica conferência (26 de Março de 1933 – O papel social e
as necessidades da investigação cientifica em Portugal) nas instalações do
jornal O Século], nos elucida com clareza acerca
do seu ideal anarquista, seguindo a
velha linha do anarquismo individualista de Silva Mendes [“o mais vermelho dos republicanos de Famalicão”] e se
prolonga até à sua morte.
Não
será necessário, portanto, recorrer à leitura da entrevista que concedeu
a João Medina [publicada na revista Clio,
1982, vol.4] para desocultar e fazer prova do seu ideal libertário. Nem
percorrer, mesmo que seja com um brilho nos olhos, as sábias palavras de Vitorino Nemésio no “Perfil de
Aurélio Quintanilha” (revista Brotéria,
1975, nº3/4, p. 175 e ss – vide a propósito deste assunto a p. 179). Ou até consultar
o verbete do Dicionário dos Educadores Portugueses (dir. António Nóvoa,
p.p.1137-1139) onde se lê: “ [Aurélio
Quintanilha] conhecido especialmente como cientista e doutrinador do
anarquismo …”]. Na verdade a leitura atenta da biografia activa e passiva do
biografado é, prudentemente, sempre boa conselheira.
Em
breve anotação, e cingindo-nos apenas
à questão em debate – isto é, ter sido ou não Aurélio Quintanilha anarquista
-, diremos o seguinte:
- em 1912, Quintanilha,
com Adriano Botelho (dirigente anarco-sindicalista
da CGT, e outros) participa nas comemorações do 1º de Maio, integrado na
corrente anarquista;
- colabora depois (a
partir de 13 de Fevereiro de 1913) um dos mais importantes jornais anarquistas,
dirigido por Pinto Quartim, o
semanário Terra Livre, de muita memória;
- ainda em 1913 (4-8 de Outubro), participa no Congresso
de Lisboa do Livre Pensamento Universal (distribuindo a sua
companheira, Susana, um manifesto
assinado pelos sindicalistas presos pelo governo de Afonso Costa) e solicita por várias vezes a palavra em reuniões
republicanas, interpelando o governo, sendo por isso ameaçado pela “Formiga Branca”;
- em 1914 faz parte do grupo anarquista “A Brochura Social” (Lisboa), juntamente com Neno Vasco e Sobral de Campos, grupo que pretendia editar mensalmente “folhetos
de propaganda libertária” (ver João
Medina, A Sementeira do arsenalista
Hilário Marques, revista Análise Social, vol. 17;
- ainda em 1914, um núcleo de mulheres anarquistas – de que
faziam parte Susana Quintanilha
(professora), Elvira Lopes, Eugénio Silva, Rosalina Correia da Silva e Margarida
Paula – reúnem-se para debater “assuntos relativos a gênero e promover
agitação política”;
- por iniciativa do grupo libertário Aurora (Porto), ainda em
1914, realizou-se um comício na cidade
do Porto (teatro Antero de Quental) contra as arbitrariedades do governo
republicano, onde participa como orador, acompanhando Neno Vasco e Sobral de Campos;
- participa na Conferência Anarquista da Região Sul
(Junho de 1914, no prédio da Caixa Económica Operária, largo da Graça,
Lisboa), onde, curiosamente, decide imprimir e divulgar obras de Malatesta (ver “Em Tempos de Eleições”) e irá apresentar a tese escrita por Neno Vasco, Os Anarquistas no Movimento
Operário. Foram sessões
muito vivas, como o debate sobre a participação de anarquistas nos sindicatos,
onde Quintanilha sustem “não ser
possível para o ponto em questão determinar regras rígidas”, porém a
posição “de consenso” de Jerónimo de
Sousa (do quinzenário O Arsenalista de Lisboa)
prevalece, isto é, ganhou a tese de evitar a entrada dos anarquistas nos corpos
diretivos sindicais (ver Alexandre Simas,
Neno Vasco …, p. 346). De
referir que alguns dos mais importantes militantes anarquistas tinham o hábito
(então) de se reunirem em casa de Aurélio
& Susana Quintanilha, nas noites de Domingo (entre eles, Emílio Costa, Afonso e António Manaças, Sobral
de Campos, Gaspar dos Santos, Neno Vasco, Bernardo Sá, Sebastião
Eugénio, Carlos Freire);
- em 1915, representa a Federação das Juventudes Sindicalistas
(sob orientação anarquista; foi criada em 1913, resultante das Juventudes
Libertárias de 1912; tinha a sede na rua do Arco da Graça, nº4, 2ª
andar e editava O Despertar) de Portugal e França, no Congresso
Mundial contra a Guerra (Ferrol, Espanha) e que se realizou
clandestinamente – segundo alguns autores, fazia parte da delegação portuguesa Manuel Joaquim de Sousa. Tendo sido
descobertos pela polícia são expulsos de território espanhol os delegados
portugueses: Quintanilha, Manuel Joaquim de Sousa, Maria Veloso, Serafim Cardoso Lucena e Ernesto
da Costa Cardoso. Curiosamente, Quintanilha
não refere nenhum desses nomes, na sua entrevista a João Medina. No
seu regresso de Espanha apresenta em várias cidades (a conferência em
Coimbra foi proibida) o tema “A Guerra e o Congresso de Ferrol”
tendo sido preso em Viana do Castelo
sob ordem do administrador da cidade, Bourbon
e Menezes, curiosamente ex-anarquista. Seja dito que, perante a
conflagração europeia, no movimento anarquista coexiste dois grupos
distintos: os guerristas [Emílio
Costa, Bernardo de Sá, Mário Costa, Miguel Córdoba, Araújo
Pereira] e os anti-guerristas [Neno
Vasco, Aurélio Quintanilha, António José de Ávila, Hilário Marques]. Os primeiros estavam
organizados em torno do grupo Germinal, enquanto os anti-belicistas
agrupavam-se à volta d’A Aurora (Porto) e d’A Sementeira (Lisboa). Não
estava longe o tempo em que numa das reuniões anarquistas em casa de
Quintanilha, na proverbial tertúlia que ali perorava, a declaração de guerra de
1914 a todos entusiasmou, porque se pensava que estava aberta a porta à
revolução social [sobre este assunto, consultar com proveito, Guerristas
e Antiguerristas, INIC, 1986]. Curiosamente muitos dos anarquistas
“guerristas”, no final da contenda, abandonaram o anarquismo, uns
passando-se para o então movimento comunista (na sua versão bolchevista), aliás
de onde alguns foram “escorraçados”, e outros enveredaram na defesa da ditadura
(ibidem, pp. 116 e ss);
- o golpe militar sidonista de Dezembro de 1917 teve o apoio
inicial de militantes libertários e republicanos (como Machado Santos) e entre eles Aurélio
Quintanilha. Aliás Quintanilha
refere (assim como Alexandre Vieira)
que foi (foram ambos e outros mais) à Rotunda falar com Sidónio Pais em nome da UON, na esperança de terminar a
perseguição aos sindicalistas e pedindo a libertação dos presos políticos. Por
outro lado, não podemos esquecer o conhecimento que Quintanilha tinha de Sidónio
Pais, pois Sidónio não lhe era estranho, dado a sua notoriedade na
Universidade de Coimbra por ser republicano no tempo da monarquia e pelo exame,
que como professor de álgebra, fez ao próprio Quintanilha;
- participa na “tertúlia” revolucionária “Falange Democrática” ou “Falange
dos Olivais” (com Sobral de
Campos, Pinto Quartim, Neno Vasco, Adolfo Lima, Emílio Costa,
Alexandre Vieira, António José de Ávila e outros);
- na tentativa insurrecional monárquica de Paiva Couceiro (Janeiro e Fevereiro de 1919), os anarquistas
organizaram grupos armados de resistência, tendo Aurélio Quintanilha vestido o uniforme militar e ido comandar a
bateria na Quintinha (A
Batalha, Fevereiro de 1919);
- a 25 de Setembro de 1927, considerado um “elemento avançado”, é
detido pela PVDE.
- em 1928, em Coimbra, frequenta a inolvidável “República
das Águias”, sob os auspícios da Maçonaria (pertencentes à loja A
Revolta), onde juntamente com os irmãos Cal Brandão, Basílio Lopes
Pereira, Manuel de Figueiredo e
muitos mais, se conspirava contra a ditadura;
- escreve nos periódicos anarquistas, além do Terra
Livre: A Aurora (Porto); A Batalha; O Despertar; A
Lanterna (10 de Julho de 1915, Angra do Heroísmo – Quintanilha assumia
a sua direcção); O Sindicalista; também colabora na revista Pela Grei (1918-1919); na
Seara
Nova (era amigo de António
Sérgio); na revista de Homens Livres (1923); no Arquivo Pedagógico (Coimbra,
1927-1930); na revisa trimestral de educação LABOR (Aveiro); dirige o
periódico bilingue de Moçambique, Memórias e Trabalhos. Centro de Investigação
Algodoeira (1947-1961).
- já em 1975, Aurélio
Quintanilha, em breve passagem por Lisboa, participa numa reunião
anarquista na sede do Movimento Libertário Português.
Em seguida,
apresenta-se alguma bibliografia que sobre este (não) assunto da qualidade
libertária de Aurélio Quintanilha diz especial respeito:
Abílio Fernandes, Aurélio Pereira de Silva Quintanilha, na passagem do seu 70º aniversário, Boletim da Sociedade Broteriana, 1962, vol. 36 | Alberto Vilaça, Resistências Culturais e Políticas nos Primórdios do salazarismo, 2003 | Alexandre Samis, Neno Vasco, o Anarquismo e o Sindicalismo Revolucionário em dois mundos, Letras Livre, 2009 | Alexandre Vieira, Para a História do Sindicalismo em Portugal, 1970 | Amélia Filomena de Castro Gomes, A educação libertária segundo Aurélio Quintanilha, Braga, 2005 | António Ventura, Guerristas e Antiguerristas. Análise retrospectiva de um conflito, in João Medina (org.), Portugal na Guerra. Guerristas e Antiguerristas, INIC, 1986, pp. 107-125 | Aurélio Quintanilha, “Discurso pronunciado por A. Quintanilha na sessão promovida pela juventude sindicalista de Lisboa em 22 de Março”, in A Aurora, 29 de Março de 1914, p.1 | Aurélio Quintanilha, “Parlamentarismo e Sindicalismo: Sindicalismo e Integralismo”, in A Batalha, Setembro de 1919 (publicado ao longo de vários artigos) | Aurélio Quintanilha, Entrevista concedida a João Medina, revista Clio, vol.4, 1982, pp.121-132 | Aurélio Quintanilha, A Universidade Livre de Coimbra (pref. Paulo Archer), Lema d'Origem, 2017 | Cláudia Ninhos, De anarco-sindicalista a Catedrático de Coimbra e do saneamento ao “exílio”. Percurso político do cientista-intelectual Aurélio Quintanilha (FCSH/NOVA) | Edgar Rodrigues, Breve História do pensamento e das Lutas Sociais em Portugal, 1977 | Edgar Rodrigues, A Resistência Anarco-Sindicalista à Ditadura, 1981 | Edgar Rodrigues, A Oposição Libertária em Portugal (1939-1974), Sementeira, 1982 | Fernando Namora, Fogo na Noite Escura (pref. de Joaquim Namorado), Caminho, 2018 | Filipa Freitas, Les Jeunesses Syndicalistes au Portugal, 2007 | João de Barros, Cartas Políticas, 1982 | João Medina, Um semanário anarquista durante o primeiro Governo Afonso Costa: Terra Livre, 1981, vol. 17 (67-68) | Luís Salgado de Matos, Lisboa, 1920 - vida sindical e condição operária, in Análise Social, 1981, vol. 17 (67-68) | Manuel Joaquim de Sousa, O Sindicalismo em Portugal, 1972 (3ª ed.) | Quintino Lopes, Aurélio Quintanilha e António Sousa da Câmara: entre distintas ideologias políticas e semelhantes práticas científicas, IHC | Vitorino Nemésio, Perfil de Aurélio Quintanilha (discurso proferido em Homenagem a Aurélio Quintanilha pela Sociedade Portuguesa de Genética, Brotéria Ciências Naturais, 1975 (republicado na Brotéria Genética, em 1993, nº1-2), nº 3-4.
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