“Teófilo Braga, o homem, o
erudito e o político” – por António Valdemar, in Caderno E, Expresso, 26 de Janeiro
de 2024
Foi um dos fundadores do Partido Republicano, depois Presidente da República, escrevia compulsivamente, investigou Camões — que elegeu como símbolo da nacionalidade —, nunca atravessou a fronteira. Teófilo Braga visto por si e pelos contemporâneos — admiradores e críticos —, no centenário da sua morte.
Passou a vida a escrever. Foi encontrado morto na sua mesa de
trabalho. Tinha 80 anos. Faleceram os três filhos e, anos depois, a mulher. Teófilo Braga morava só. Rodeado de
livros, asfixiado por ressentimentos e sempre empenhado em completar e concluir
os temas que o absorveram a vida inteira. Deixou uma obra de investigação e de crítica
com mais de 200 títulos. Ele próprio assim se definiu: “Dentro de um poço,
desde que lá tivesse os meus livros, uma resma de papel e um lápis, conseguiria
viver.”
Por sua vez, Ramalho
Ortigão, que o conheceu com proximidade, afirmou: “Simples, sóbrio, duro,
com hábitos de uma austeridade de espartano, sabendo reduzir as suas
necessidades a toda a restrição a que lhe reduzam os meios, vivendo no seu
isolamento como Robinson na sua ilha.” (…) “Não publica um volume por semana,
pela razão única de que não há prelos, em Portugal, que acompanhem a velocidade
vertiginosa da sua pena. Escreve de graça, desinteressadamente, em satisfação
do seu prazer supremo, o prazer de espalhar ideias.”
Na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do
século XX, Teófilo Braga (1843-1924)
foi um dos autores com maior número de obras publicadas sobre a história da
literatura portuguesa, desde os primórdios até João de Deus e Antero de
Quental. Assinalam-se, neste contexto, as investigações sobre Camões, nos múltiplos
aspetos da obra épica, lírica e teatral; “Gil Vicente e as Origens do Teatro
Português”; “Bernardim Ribeiro e o Bucolismo”; Cristóvão Falcão, autor
da “Écloga Crisfal”; Bocage, a vida e a obra; “Filinto Elísio e
os Dissidentes da Arcádia”; a “História do Romantismo em Portugal”;
e “Garrett e a sua Obra”.
A curiosidade de Teófilo
estendeu-se a outros temas: o povo português, nos seus costumes, crenças e
tradições; o cancioneiro e o romanceiro popular; os contos tradicionais. Também
se consagrou à política. Encontra -se ligado à fundação, ao desenvolvimento e
à projeção do Partido Republicano Português. Desempenhou as funções de
presidente do governo provisório e de Presidente da República.
Acrescente-se o percurso na Universidade de Coimbra, a propósito
das opções pedagógicas que se refletiram na cultura e na sociedade portuguesas:
Sistema de Sociologia (para alargar as previsões, comprová-las e acelerá-las
pela intervenção política e governativa); Soluções Políticas da Política
Portuguesa, para demonstrar que o povo estava preparado para receber a
República.
DE ESTUDANTE A PROFESSOR
Nasceu em Ponta Delgada a 24 de fevereiro de 1843. Enquanto
aluno do liceu, principiou a atividade literária em jornais e revistas em São
Miguel. Aprendeu, ainda, rudimentos da tipografia. Dirigiu-se, aos 18
anos, para Coimbra. Tinha a ambição de ser professor na universidade. Arrostando
com os maiores sacrifícios, sem quaisquer apoios financeiros, vivendo apenas de
explicações, tirou, entre 1862 a 1867, o curso de Direito, com elevadas
classificações.
Um ano depois fez provas de doutoramento com uma tese acerca da
história do direito português — os
forais. Reconheceram-lhe os méritos. Contudo, para ascender à cátedra,
foi preterido por um candidato que possuía relações privilegiadas com o júri.
Tentou, em seguida, lecionar Direito Comercial na Academia Politécnica do
Porto. Voltou a ser rejeitado. Finalmente, concorreu, em 1872, a uma cátedra
sobre Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, um concurso público muito
renhido. Entre os candidatos encontravam-se Pinheiro Chagas e Luciano
Cordeiro. Eram os outros candidatos e tinham as maiores proteções no corpo
docente. Teófilo conseguiu, finalmente, vencer.
Teófilo Braga radicou-se, a partir de então, em Lisboa, até falecer a
28 de janeiro de 1924. Nunca atravessou a fronteira. A sua vida, de
enorme sobriedade, circunscreveu-se entre a intimidade e os contactos
quotidianos: o Curso Superior de Letras; instalado no edifício da Academia
das Ciências, da qual foi vice-presidente. (O rei, por razões
estatutárias, era o presidente de honra). Deslocava-se, ainda, para fazer
pesquisas documentais à Torre do Tombo que funcionava no Palácio de São Bento,
e à Biblioteca Nacional, estabelecida no antigo Convento de São Francisco, na
área do Chiado. Pertenceu a uma tertúlia na rua do Arsenal, na livraria Carrilho Videira, que reunia e editava
obras de republicanos. Andava a pé ou nos transportes públicos, mesmo
quando foi Presidente da República.
Ramalho
Ortigão procurou, ainda, defini-lo nestes
termos: “Este débil de aspeto um pouco valetudinário, dorso curvo, ventre
chato, estômago escavado, deixando descair as calças em pregas sobre os
sapatos, é o mais forte, o mais rijo, o mais enérgico temperamento que tenho
conhecido.” Os caricaturistas retrataram-no com ironia. Joshua Benoliel fixou-o em dezenas de
fotografias. Tornara-se uma figura típica de Lisboa.
AS POLÉMICAS
A atividade literária, histórica, filosófica e política de Teófilo Braga desencadeou sucessivas controvérsias: Castilho atacou a sua participação na Questão Coimbrã; Camilo, pelos mais diversos motivos, constituiu um dos seus mais acérrimos adversários; Ricardo Jorge, a propósito de um estudo acerca de Rodrigues Lobo, denunciou- -o como plagiário.
Todavia, entre os críticos mais severos, avulta Antero de Quental: “Os primeiros passos no estudo da história literária portuguesa — escreveu — foram dados pelo sr. Teófilo Braga, essa glória ninguém lhe tira. Tem defeitos: a impaciência que o leva muitas vezes a conclusões prematuras; e o espírito sistemático que o leva também a conclusões falsas.” (…) “O lado inferior e frágil — acentua Antero de Quental — são as teorias gerais, a parte filosófica; sente-se que não é essa a vocação do sr. Teófilo Braga. Ao mesmo tempo quimérico e sistemático, dá às suas doutrinas gerais uma feição dogmática que lhes tira aquele poder de ductilidade e compreensão, sem o qual uma teoria, para acomodar os factos ao seu rigor inflexível, tem de os forçar, umas vezes e outras vezes, de pôr de lado. Isto é — adverte Antero de Quental — o que torna abstrusas certas obras, como a ‘Poesia do Direito’.” (in “Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa”, Porto 1872).
CAMÕES, O SÍMBOLO NACIONAL
Camões foi um dos temas que, durante meio século, mais entusiasmou Teófilo. Interessaram-lhe todos — ou quase todos — os aspetos da vida e a obra do poeta. Fez uma reflexão e estudo dos textos mais antigos de biógrafos e comentadores, o chantre Severino de Faria, o licenciado Manuel Correia, o historiador e filólogo Manuel Faria de Sousa e o memorialista João Soares de Brito. Formulou hipóteses e extraiu conclusões, muitas das quais se revelaram precárias, em torno das circunstâncias relativas à conceção, publicação e divulgação de “Os Lusíadas”; e a outros assuntos como a tença, a morte e a sepultura de Camões; e, ainda, a permanência em África e no Oriente.
Sejam quais forem as reservas, os estudos de Teófilo proporcionam pistas para investigação do tempo histórico e da amplitude da obra do poeta, que não ficou alheio ao desconcerto do mundo e às vulnerabilidades da condição humana. Procedeu a uma campanha de opinião pública para celebrar, em todo o país, o terceiro centenário da morte de Camões. A informação existente indicava o dia 10 de junho. Foi exatamente nesse dia que se realizaram, em 1880, as comemorações, com a participação de intelectuais, políticos e elevado número de populares. Destinavam-se a promover a coesão do Partido Republicano, unindo as várias tendências e grupos dispersos, no pensamento e na ação. Recorde-se que, pouco antes de falecer, concedeu uma entrevista ao “Diário de Notícias”, na qual insistiu que a data do nascimento de Camões era 5 de fevereiro de 1584. O Governo, presidido por Álvaro de Castro e tendo António Sérgio como ministro da Instrução, determinou que o dia 5 de fevereiro passasse a ser feriado nacional. A data foi aprovada pelo Congresso da República e promulgada pelo chefe de Estado, Manuel Teixeira Gomes.
Concretizava-se assim, a título póstumo, a aspiração cívica de Teófilo: o sentimento nacional é um dos pilares fundamentais para a unificação dos portugueses. “Pelo amor do seu território, pela necessidade de manter a independência”, escreveu, “é possível alcançar uma ação comum, um sentimento coletivo que fortifica o sentimento da pátria e da nacionalidade.” (…) “Camões”, sintetizou, “deu expressão a esse sentimento, que transformou uma pátria numa nacionalidade”.
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Proclamada a República, Teófilo Braga foi escolhido para chefe
do governo provisório (5 de outubro de 1910 a 4 de setembro de 1911).
Acompanhou a apresentação, o debate e a votação da legislação que estruturou o
novo regime. A ditadura de Pimenta de
Castro (28 de janeiro de 1915 a 14 de maio de 1915) que encerrou o
Parlamento e conduziu à demissão do Presidente da República Manuel de Arriaga (eleito a 24 de
agosto de 1911 e a desempenhar funções até 26 de maio de 1915). Perante esta
crise, que provocou uma das mais sangrentas e devastadoras revoluções,
solicitaram a Teófilo Braga para ocupar
o cargo, porque reconheciam nele uma reserva moral e cívica.
Eleito em sessão do Congresso a 29 de maio de 1915, obteve 98 votos a favor, contra 1 voto para Duarte Leite e três votos em branco. Durante quatro meses assegurou a chefia do Estado, em circunstâncias particularmente complexas, a nível nacional e internacional. A defesa dos territórios portugueses de África, em especial Angola e Moçambique, perante ameaças da Alemanha, determinou a expedição de contingentes do Exército e da Marinha. A 5 de agosto de 1915 na Europa eclodiu o que viria a ser a Grande Guerra.
Os efeitos do conflito acentuaram-se com muito impacto nas lutas partidárias e na subida dos preços dos bens de consumo diário. Gerou-se a corrida aos bancos para levantar os depósitos. Havia uma profunda instabilidade política e social. Contudo, a entrada de Portugal na guerra, em solidariedade com a Inglaterra — e devido à secular aliança subscrita entre os dois países — só se verificaria a 7 de agosto de 1916. Deu lugar a mais outra controvérsia entre as forças militares e os principais partidos políticos.
EUROPA E ATLÂNTICO
Teófilo Braga, ao tomar posse, referiu que a sua orientação visava “a harmonia de todos os poderes do Estado, o reconhecimento de que o poder soberano da nação reside essencialmente no Congresso, de que o presidente não é senão um mandatário. O contrário seria eu a exercer um imperialismo presidencialista”.
Fez questão de salientar que, perante “esta espécie de solidariedade humana, que corrige os excessos do egoísmo nacional” (…), “um outro equilíbrio europeu tem de fundar-se.” Assim, “a política externa de Portugal deriva completamente da sua situação geográfica; ela solidarizou-se com a Europa, quando combatia o imperialismo da Espanha no século XVII e quando no século XIX desmoronava o imperialismo napoleónico, ela nos fará cooperar na atividade mundial dos grandes Estados, com o apoio no Atlântico”.
Noutro passo, Teófilo Braga concluiu: “Apresentando estes dois aspetos de política, interna e externa, da nação portuguesa, dela se deduz um plano do Governo. E ao proferir as palavras de compromisso de honra, desta hora em diante só aspiro que, ao regressar dignamente ao lar, se possa dizer: cumpriu o que prometeu; guiou-se pelo bom senso e pelo desinteresse.”
CONSAGRAÇÃO NACIONAL
Teófilo Braga, tal como João de Deus e Guerra Junqueiro, após o seu falecimento teve honras nacionais e foi sepultado nos Jerónimos — à data o Panteão Nacional. Em 1925, Alfredo Guisado, poeta da “Orpheu” e vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, inscreveu-o na toponímia. A rua onde residia, a Travessa de Santa Gertrudes, passou a denominar-se Rua Teófilo Braga. Também Alfredo Guisado deu o nome de Teófilo Braga ao Jardim da Parada, no centro do bairro de Campo de Ourique. Pouco depois, a 16 de outubro de 1926, inaugurava-se, no Jardim da Estrela, um monumento dedicado a Teófilo Braga, da autoria do escultor Teixeira Lopes. Em pleno salazarismo, o monumento saiu do Jardim da Estrela e foi enviado para Ponta Delgada, por ocasião do centenário do seu nascimento. Ficou junto ao Forte de São Brás, a curta distância da casa onde nasceu.
Embora muito combatido por intelectuais de várias tendências, também contou com a fidelidade e dedicação de amigos como Francisco Maria Supico e de discípulos como Teixeira Bastos, Reis Dâmaso, Fran Paxeco, A. do Prado Coelho. Um dos seus admiradores, Álvaro Neves, inventariou a sua interminável bibliografia e organizou o “In Memoriam”. Ao dissiparem-se as incompatibilidades pessoais e aversões políticas, chegou a hora da reabilitação da vida e da obra em trabalhos de investigação e crítica de Joaquim de Carvalho, Luís da Câmara Reys, Mário Soares e, presentemente, Amadeu Carvalho Homem.
Um facto é evidente: o homem, o erudito, o cidadão e o político merecem ser evocados no ano do centenário da sua morte. Destaca-se, quaisquer que sejam as reservas, o pioneiro da história da literatura que elegeu Camões como o símbolo da nacionalidade. Foi um dos fundadores do Partido Republicano que contribuiu para a transformação da sociedade portuguesa, para a mudança do regime e para a solução de algumas crises institucionais.
O “ORGULHO DE SER AÇORIANO”
Saiu de Ponta Delgada aos 18
anos e nunca mais voltou à ilha de São Miguel. Guardava memórias amargas da
infância e da adolescência. Manteve um contacto epistolar assíduo com Francisco Maria Supico, diretor do
jornal “A Persuasão”, que lhe acompanhou os primeiros passos e o incentivou a
fazer carreira universitária. Entre as numerosas obras que publicou, faz referências
a autores açorianos como Gaspar Frutuoso,
propôs o camoneanista José do Canto
para sócio da Academia das Ciências e ocupou-se de temas açorianos. É o caso de
“Cantos Populares do Arquipélago Açoreano” (1869). Este trabalho baseia-se na
recolha feita por João Teixeira Soares
de Sousa (1827-1882), a pedido de Garrett.
Acerca da poesia popular — escreveu Teófilo
— existem duas modalidades: “uma atual, móvel, continuamente em elaboração
porque é um eco da vida, uma linguagem das paixões e dos sentimentos de hoje; a
outra é tradicional, histórica, em desarmonia com os costumes presentes, mas repetida
ainda religiosamente como lembrança de costumes e sucessos que já passaram.”
Constitui: “o rapsodo de todas as alegrias e tristezas do poema da vida. A
poesia — para o povo — é o ritmo do esforço no trabalho, o esquecimento da
miséria, a expressão dos desejos, o tesouro da sua moral e tradições antigas, a
linguagem do amor, o gemido, enfim, a verdade simples da sua alma.” (…) Compreende,
por conseguinte, “fados e canções da rua, orações, profecias nacionais e
aforismos poéticos da lavoura”.
Ao ser entrevistado por Albino Forjaz de Sampaio, declara que “nunca
tivera a doença do açoriano, o apego ferrenho às suas ilhas, a nostalgia que
sentimos quando delas nos afastamos. No entanto, através da minha longa vida,
sempre me interessou tudo o que pudesse interessar aos Açores, especialmente à
minha terra”. Afirmou, ainda com veemência: “Tenho orgulho de ser açoriano. As nossas ilhas são o foco da melhor
tradição nacional. Nunca reneguei a minha terra. Sou ilhéu, nasci nesses
rochedos donde irradiou o espírito das autonomias”.
Teófilo Braga, o homem, o erudito e o político – por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], in Revista E (Expresso), 26 de Janeiro de 2024, p.50-52 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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