domingo, 17 de março de 2024

O 25 DE ABRIL, A FORÇA DOS SÍMBOLOS – POR ANTÓNIO VALDEMAR

 


O 25 DE Abril, a força dos símbolos” – por António Valdemar, in Tempo Livre

 Portugal ficou diferente. Falta muito para o desejável. Mas faltará sempre, aqui e em outros países democráticos, que enfrentam os problemas atuais e procuram articulá-los com os grandes desafios do futuro

Tudo aconteceu há 50 anos. Rompeu através da madrugada e ganhou uma energia extraordinária através de todo o dia. A apoteose decorreu no 1.º de Maio. A Liberdade era restituída, em 25 de Abril, com a poesia e a música de José Afonso, sem recorrer aos tiros dos canhões e das espingardas. Nas ruas de Lisboa, e um pouco por todo o país, os cravos vermelhos logo se transformaram num dos símbolos vivos da revolução. Constituiu o ponto final de 50 anos de ditadura imposta por Salazar, seguida por Marcello Caetano. A poesia, a música e as artes plásticas registaram testemunhos impressionantes da prisão, da tortura, do exílio e da saga da resistência. A Ode à Liberdade de Jaime Cortesão insistia no repúdio ao «ódio fanático dos bonzos», ao «ciúme vil dos fariseus». Para louvar «a cada novo dia e duro preço», o «sopro e a lei da criação». Era a exortação para transpor a incerteza, a violência, a desigualdade e estabelecer uma cultura de justiça, de tolerância e diálogo.

Outro poeta, Sidónio Muralha, não podia sufocar este protesto veemente: «Já não há mordaças, nem ameaças,/ nem algemas que possam impedir/ a nossa caminhada,/ em que os poetas são os próprios versos dos poemas.» Ou, então, o clamor de Prometeu, recriado por Joaquim Namorado: «Abafai-me os gritos com mordaças,/ maior será a minha ânsia de gritá-los; /amarrai-me os pulsos com grilhetas,/ maior será a minha ânsia de quebrá-las;/ rasgai a minha carne, triturai os meus ossos,/ o meu sangue será a minha bandeira;/ meus ossos o cimento de uma outra humanidade, /que aqui ninguém se entrega./ Isto é vencer ou morrer!»

Jorge de Sena, do outro lado do mar enviava este poema repleto de angústia e alguma esperança. «Eu não posso senão ser/ desta terra em que nasci. /Embora ao mundo pertença /e sempre a verdade vença, /qual será ser livre aqui, /não hei-de morrer sem saber. / Trocaram tudo em maldade, /É quase um crime viver./ Mas, embora escondam tudo/ e me queiram cego e mudo, /Não hei-de morrer sem saber/ Qual a cor da liberdade

Sophia de Mello Breyner viveu e celebrou em Lisboa o 25 de Abril. Em plena revolução deslocou-se a Caxias para acompanhar a libertação dos que estiveram privados de liberdade. Resumiu num poema – ilustrado por Vieira da Silva – que ficou a ser uma referência obrigatória: «Esta é a madrugada que eu esperava /O dia inicial inteiro e limpo /Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo.»

O programa do 25 de Abril anunciou – e cumpriu – a reposição das liberdades reprimidas e castigadas durante meio século; o início da descolonização possível; a oportunidade para concretizar as regras constitucionais que fundamentam um Estado de Direito. Milhares e milhares de portugueses e suas famílias encontravam-se dilacerados pela crueldade da guerra colonial, em três frentes de combate: o espectro da morte, os pressentimentos, as insónias, os pesadelos que nunca mais esquecem.

Os poemas escaldantes de Manuel Alegre tornaram-se a voz da nossa própria voz: «Foram dias foram anos a esperar por um só dia. /Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía /Com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia /Na esperança de um só dia. Foram batalhas perdidas. Foram derrotas e vitórias./Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias) / Mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida) /Por um só dia vivida./ (…) Fogos-fátuos cinza fria. Musa minha que cantavas /A canção que se vestia com bandeiras nas palavras: /Armas que o tempo tecia. Minha vida toda a vida / Por um só dia vivida.»

No romance Os Memoráveis, Lídia Jorge recriou testemunhos de intervenientes da revolução e, ao mesmo tempo, os efeitos da passagem do tempo, não só acerca desses protagonistas, mas dos que se evidenciaram na sociedade contemporânea. Caracterizam a grandeza e as misérias dos portugueses, no dia-a-dia, e, em momentos históricos. Dir-se-iam que permanecem como sobreviventes de um tempo já inalcançável.

A leitura dos Memoráveis conduz-nos à ilusão revolucionária, à desilusão de muitos e à travessia para conseguir a plenitude da democracia. A exaltação e o ceticismo destacam-se, invariavelmente na poesia, nos Diários, nos contos, novelas e romances de Miguel Torga.

É o homem sempre irritado, receoso, sombrio, ressabiado, cujo mundo reside, apenas, nele próprio. Basta ler e refletir na posição assumida, em 1976, num discurso sobre o 25 de Abril, proferido em Arganil: «Hora angustiosa que nada fazia prever em Abril de setenta e quatro, quando uma manhã de esperança raiou no espírito de todos nós. Depois de meio século de negrura, o sol da liberdade brilhou inesperadamente em Portugal. E foi, como sabeis, uma festa universal. Depressa, porém, a tristeza voltou.

E a palavra revolução, acolhida com benevolência até nos ouvidos, mais refractários, em vez de, como outrora, significar uma rotura promissora e fecunda, passou a evocar apenas a desordem à solta nas ruas, e o arbítrio e a prepotência, ensarilhados na parada dos quartéis. Creio que nenhum português consciente esquecerá até ao fim dos seus dias estes dois anos aziagos. Enganada na sua boa fé, a alma da Nação foi durante eles indelével e dolorosamente tatuada por todos os estigmas da desgraça

Qualquer que seja a avaliação o 25 de Abril cerrou as grades das prisões políticas de Caxias, do Aljube e de Peniche. Promoveu a formação de partidos, de pluralismo de opinião e de crítica. Ao procedermos a um balanço sumário verificamos acidentes de percurso. Todavia, a Constituição da República, estabeleceu as regras do exercício do Estado de Direito e a enumeração dos objetivos fundamentais para o combate inadiável à rotina e ao pensamento único; para reclamar os imperativos da mudança, incutir a exigência de responsabilidade ética, estimular a ousadia e a inovação para a transformação do País, mergulhado em estruturas arcaicas.

Concretizou-se o programa do 25 de Abril, anunciado nessa madrugada histórica. Houve, de imediato, a restituição das liberdades. Realizou-se a integração na Europa. Falta muito para atingir o desejável, mas faltará sempre, aqui e em outros países livres e democráticos, que dentro dos condicionalismos inevitáveis enfrentam os problemas atuais e procuram articulá-los com os grandes desafios para o futuro.

O 25 DE Abril, a força dos símbolos – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências] – in Tempo Livre Março/ Abril de 2024, p. 8 – com sublinhados nossos; FOTO de Álvaro Carrilho.

J.M.M.

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