“As grandes questões intelectuais, sociais e
políticas, desde Erasmo até ao fim do século XX, preencheram a inquietação
cultural e o empenhamento cívico de Álvaro Salema, crítico literário e jornalista
profissional, nascido há 100 anos (Viana do Castelo 11-3-1914 e Lisboa, 1991),
que hoje se completam, porventura sem manifestações especiais. Tinha uma
presença discreta. Vivia recolhido entre a casa e o emprego, apesar da luta
permanente contra o salazarismo que motivou várias prisões pela PIDE.
Professor de Filosofia, afastado do ensino oficial
por motivos políticos, lecionou no Colégio Moderno contribuindo para a formação
de numerosos alunos que viriam a atingir dimensão pública. Destacam-se, por
exemplo, Mário Soares e David Mourão-Ferreira, que nunca esqueceram a
influência decisiva do seu magistério. Para Álvaro Salema – disse-me e também
escreveu Mário Soares – a escola constituía um espaço de desenvolvimento e
estímulo da personalidade do jovem aberto à pluralidade do saber e do
conhecimento.
Embora vocacionado para o exercício pedagógico,
Álvaro Salema resolveu optar pelo jornalismo e a colaboração em revistas de
impacto cultural e político: Seara Nova, Sol Nascente, Vértice, Mundo
Literário. Mas o vínculo profissional na imprensa decorreu através do Jornal
do Comércio, no qual foi o editorialista durante mais de 30 anos.
Ficou, sob o anonimato, no Jornal do Comércio,
o registo e comentário das conjunturas económicas e financeiras. Contudo,
Álvaro Salema ganhou visibilidade e projeção nacional nos suplementos culturais
do Diário de Lisboa e de A Capital que não só coordenou mas onde
tinha a página semanal de crítica literária. Após o 25 de Abril recusou
qualquer protagonismo (caso da direção do Diário de Noticias). Ficou a
colaborar na revista Colóquio, nas Publicações Europa-América, e a
dirigir as publicações do Instituto de Língua e Cultura Portuguesa.
Discípulo de um dos mais próximos amigos de António
Sérgio, ligado à génese e evolução do neo-realismo, Álvaro Salema ocupou-se dos
grandes clássicos, dos grandes contemporâneos e de poetas, escritores e
ensaístas recentes, hoje já com o estatuto de clássicos da modernidade. Atento
a tudo o que se publicava, em Portugal, no Brasil, na França, na Espanha e na
Itália, Álvaro Salema, sempre controlado pela Censura, privilegiava a
orientação politica e filosófica contra o salazarismo, mas não foi hostil a
inovações literárias e ruturas estéticas. Reuniu, em Tempo de Leitura
(1982), uma parte muito reduzida da sua extensa atividade critica.
A dispersão quotidiana nos jornais permitiu-lhe,
todavia, publicar ensaios de referência: A Crise na Cultura Europeia do
Renascimento, Erasmo e o Ideal Humanista, Nietzsche e a
Civilização Contemporânea, Variações sobre o Quixote e o Ideal
Quixotesco. Também é autor de estudos biográficos e literários sobre Ferreira
de Castro: Uma Vida, Uma Personalidade e Uma Obra; Alves
Redol, um escritor do povo português; e Bento Caraça, Um
Humanista para o Nosso Tempo. Traduziu de Pablo Neruda Confesso que Vivi;
de Santiago Carrillo Amanhã a Espanha; os três volumes da História
Geral da Europa; e prefaciou e sistematizou uma Antologia do Conto
Português Contemporâneo.
Álvaro Salema – na continuidade da militância
luso-brasileira desenvolvida, entre outros, por João de Barros, Nuno Simões e
Vitorino Nemésio – contribuiu para a intensificação da relação com o Brasil,
divulgando obras e autores significativos no Diário de Lisboa, n'A
Capital e na Colóquio. Deixou-nos o livro Jorge Amado, o Homem e
a Obra. Presença em Portugal; prefaciou e organizou as edições das obras de
Jorge Amado, António Calado e Adonias Filho. Por essa aproximação, foi
distinguido com a medalha de honra Machado de Assis, atribuída pela Academia
Brasileira de Letras e também eleito sócio da Academia Brasileira de Letras.
Tive a oportunidade de o conhecer, em casa de
António Sérgio; na roda de amigos de Ferreira de Castro, na tertúlia da Veneza;
de trabalhar com Álvaro Salema na arrancada de A Capital dirigida por
Norberto Lopes e Mário Neves. Era uma figura humana de rara probidade. Redigia
com enorme fluência e em forma definitiva. Com palavras poucas e próprias, na
escrita e no convívio, sabia o momento certo e oportuno para intervir com
lucidez e firmeza. Para afirmar, sem posições ortodoxas, os valores da
liberdade e da democracia. A vida e a cultura, para Álvaro Salema, identificavam-se
se com a exigência ética e o racionalismo humanista”.
[António Valdemar – in jornal PÚBLICO (12/03/2014), sublinhados nossos]
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