“As raízes de Portugal em tempo de crise” – por António Valdemar, in Público
“Uma das maiores figuras
portuguesas de todos os tempos, Leite de Vasconcelos, num recente ciclo de
conferências na Assembleia da República, foi revisitada nos múltiplos aspetos
da sua obra que, duas ou três gerações de discípulos e colaboradores,
disseminaram através do País. Tomei parte na sessão de encerramento que se
deveria intitular Leite de Vasconcelos, Homem de Letras, mas, por minha
sugestão, passou a denominar-se Peregrino do Saber.
Leite de Vasconcelos, em meu
entender, não é nem um poeta, nem um escritor. Há um abismo entre fazer versos e
criar poesia. E há outro abismo entre redigir prosa e ser escritor. Leite de
Vasconcelos publicou livros de versos que constituem, apenas, testemunhos
autobiográficos, fragmentos de estados afetivos, memórias da Pátria e da
pequena pátria, inventário de princípios e virtudes que orientaram a sua vida e
a sua obra.
Quanto à prosa de Leite de
Vasconcelos é a escrita clara e concisa de um investigador, modelo de texto
vernáculo, próprio do mestre das Lições de Filologia Portuguesa. É a linguagem
simples e correta que o Peregrino do Saber utiliza para se pronunciar em vários
domínios da cultura erudita e da cultura popular.
Ao reler a revista Sudoeste de
Almada Negreiros e Dario Martins (para completar um trabalho acerca de Almada
Negreiros e os Painéis), voltei a refletir nesta advertência de Fernando Pessoa
que tanto se aplica à avaliação dos poetas como à dos escritores: “O poeta
superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O
poeta inferior diz o que julga que deve sentir."
Se Leite de Vasconcelos não
foi, na aceção rigorosa, um poeta ou um escritor, permaneceu ao longo da vida
um companheiro solícito, um amigo dileto e até um mestre respeitado de
escritores e de poetas. Todos e cada um, mesmo com divergências ideológicas,
tinham uma ideia de Portugal e uma ideia para Portugal. Alguns exemplos: quando
Leite de Vasconcelos fazia estudos universitários no Porto conheceu Antero de
Quental. Descreveu, no Mês de Sonho, as relações pessoais e culturais que
tiveram. Era o Porto erudito e republicano (com um projeto para a cidade e para
a região do Norte) de Basílio Teles e Sampaio Bruno; o Porto de Camilo, já sem
paixão por Ana Plácido, a caminho dos editores e oftalmologistas. Era o Porto
boémio e literário de Teixeira Gomes, que procurava concluir o curso na Escola
Médico Cirúrgica; o Porto do pintor Marques de Oliveira, que retratou Teixeira
Gomes e o mar e o areal da Póvoa de Varzim. Era o Porto laborioso, recetivo às
solicitações da cultura e ao sentido da universalidade. Deu alguns dos médicos
que lecionaram no Curso Superior de Letras e na sua transformação em Faculdade
de Letras de Lisboa: Queiroz Veloso, Leite de Vasconcelos e João Barreira. Vão
juntar-se a outros médicos de outras proveniências: Silva Teles, Francisco Reis
Santos e Matos Romão.
Fixemo-nos agora nos
discípulos: Afonso Lopes Vieira orgulhava-se de ter recebido, na Biblioteca
Nacional, lições particulares de Leite de Vasconcelos. Com ele aprofundara o
conhecimento da língua portuguesa e o entendimento das raízes de Portugal. De
um Portugal lido e refletido, visto, ouvido e saboreado, ao contrário de outros
contemporâneos de Lopes Vieira que buscaram um perfil nacionalista e político
extraído dos paradigmas de Maurras e de Barrés.
Vitorino Nemésio não foi
aluno de Leite de Vasconcelos mas ainda privou com ele. Considerava-se seu
discípulo. Analisou a obra, o homem e o mestre que classificou "um
interpelador de esfinges". Entre tantos, recordo mais dois escritores que
não passaram pelas aulas de Leite de Vasconcelos mas que se consideravam seus
discípulos – Aquilino Ribeiro e João de Araújo Correia. A dedicatória de
Aquilino no pórtico do livro Avós dos Nossos Avós, à memória de Leite de
Vasconcelos destaca a amplitude de uma obra que recuperou o percurso de um
povo, através dos séculos.
O ciclo efetuado na
Assembleia da República tornou-se extensivo a colaboradores de Leite de
Vasconcelos, os que preconizaram os conhecimentos e métodos da época e adotados
pelo mestre e os que transpuseram o mestre e a sua obra introduzindo
perspetivas inovadoras: Manuel Heleno, Luís Chaves; Paulo e Alda Soromenho
Orlando Ribeiro e Manuel Viegas Guerreiro. Este restrito núcleo é suscetível de
se alargar a muitos outros alunos (ou meros leitores) que se distribuíram em
cidades e vilas de norte a sul do País, na Madeira, nos Açores, nos territórios
de Africa e do Oriente. Até no Brasil, sendo eleito para a Academia Brasileira
de Letras.
Citar é sempre omitir, mas
avanço os nomes de Rodrigues Lapa, João da Silva Correia, Hernâni Cidade, José
Saraiva, José Pereira Tavares, Fidelino de Figueiredo, António do Prado Coelho,
Pedro Serra, José Henriques Barata, Cortes Rodrigues. Cada qual – a seu modo e
na esfera das suas possibilidades e recursos – a desempenhar funções em
universidades, liceus, escolas técnicas, museus e bibliotecas, deu projeção e
sequência ao magistério de Leite de Vasconcelos na arqueologia, na etnografia,
na etnologia, na filologia, na numismática, na antropologia...
Já alvitrei na Academia das
Ciências na sessão comemorativa dos 150 anos de Leite de Vasconcelos, que se
deveria proceder a nova edição dos dois volumes de De Terra em Terra, incluindo
o Mês de Sonho e alguns dispersos nos Opúsculos. (De 28 de Maio a fins de Junho
de 1924, completaram-se, agora, 90 anos, houve uma viagem de intelectuais aos
Açores, uma visita de ilha em ilha, num contexto politico complexo, já estudado
numa tese universitária de Luiz de Menezes. Sem se aperceber dos intuitos para
derrubar a I República e, em especial, o Partido Democrático, Leite de
Vasconcelos foi integrado nesse grupo e reuniu notas de viagem no livro Mês de
Sonho.)
Os possíveis três ou quartos
volumes com o título genérico De Terra em Terra requerem, contudo, novo
tratamento gráfico e iconográfico, um índice de cidades, vilas, aldeias,
lugares, grandes e pequenos tesouros; e outro índice de nomes de pessoas, de
assuntos, de ofícios, de instituições, da religião, de formas de culto, de
alfaias litúrgicas, da alimentação, de vestuário e acessórios, de médicos,
cirurgiões e de curandeiros, de remédios e de mezinhas. E mais, muito mais...
De tudo o que pode promover
os vários patrimónios que constituem o património material e imaterial. Tal
como ensinou Leite de Vasconcelos indo ao encontro dos fatores de identidade de
Portugal e dos portugueses. Dos vínculos que, sobretudo em tempos de crise,
resistem às ameaças de massificação que procura anular as diferenças e
singularidades de uma cultura que se impõe defender e se deve valorizar”.
As raízes de Portugal em tempo de crise – por António Valdemar [Jornalista e investigador], jornal
Público, 8 de Agosto de 2014, p.41 - sublinhados nossos.
J.M.M.
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