CARLOS BABO, “Espírito Errante. Retalhos de um Diario” (capa de
Manuel Monterroso), Lisboa, Tipografia do Comercio (Rua da Oliveira, 10 – ao
Carmo), 1916, 112 p.
► “- Olá,
mestre! … Vae o diabo lá fora … Tiros, pranchadas, correrias, gritos, assaltos
a esquadras de policia... desasocego perigoso! Isto vae mal, mestre! O trabalho
escasseia, o comercio encolhe-se numa crise exhaustiva, a industria não dá um
passo, o retraimento geral lança-nos a todos numa situação desesperada... Isto
vae mal.
Quem assim falava' era um
rapaz com aparencia de vinte anos, vestindo blusa de operario, alto, forte, de
cabeça descoberta, cabelos negros anelados, olhar vivo, rasgado, inteligente.
Aquele a quem ele chamava
mestre, estava sentado junto de uma mesa pequena e tôsca de pinho, numa ampla
oficina de tanoaria. Era um operaria tambem e aparentava ter cinquenta anos.
Usava barba grande, naturalmente frisada e que lhe chegava até meio do peito
espaçoso e saliente. Tinha a fronte larga, aberta em sulcos transversaes, sob
uma farta cabeleira grisalha, onde ele nesse momento sucessivamente mergulhava
os dedos enclavinhados da mão direita, branca e nervosa […]
- Isto vae mal, mestre. Os homens
são ferozes. Bem dizia o mestre que eu era uma creança, quando olhava todos os
meus sonhos como possiveis realidades côr de rosa ...
- Creanças ... creanças ...
Repetiu o mestre, num intimo recolhimento, esparso o olhar na mesma nesga de
céo.
Passados instantes de
silencio, voltou se o mestre para o rapaz e disse:
Quem governa Babylonia? O
Trabalho, a Honra, o Direito? Não; a licença. A patria do guerreiro e monge, do
audaz navegador e do epico sublime, tem sido alma da lenda na elegia dolente do
passado.
A blusa tomou o logar das
armaduras de aço, e a grande epopeia do futuro seria o Cantico dos Canticos do
trabalho á Liberdade...Liberdade! Como ousaram manchar meus labios esta palavra santa, que paira em silêncios de luz, muito alem das torturas da terra, das infamias do mundo, das imperfeições dos homens e das minhas apagadas esperanças?!...
Esperanças! Bronzeos grilhões
de refulgências enganadoras, que arrastaes o homem pela longa tormenta da vida,
em busca da terra da promissão, sem que jamais logre encontra-la, e por fim o
deixaes, inexoravelmente, á borda do tumulo, clamando em suplice desespero pelo
descanço misterioso da... inconsciencia! […]
E quem tem governado a
moderna Babylonia? Os homens, defendendo a pureza dos principies? Tem governado
os melhores? Não. Governam os homens integrados na lucta dos interesses.
Governa a maioria, - mentira
que a nossa fantazia morbida engendrou? Não. E' sempre uma minoria autocráta
que domina e governa, aferindo os seus actos mais incoerentes e contradictorios
pelas necessidades da Patria na aparencia, mas de facto pelas necessidades de seus
interesses em lucta …”
► NOTA BREVE: Este
“Espírito Errante”, de Carlos [Cândido dos Santos] Babo (1882-1959), foi
publicado em Março de 1916. Trata-se da republicação de um conjunto de crónicas
(1913-1916) escritas no jornal “República”.
Diga-se que Carlos Babo [AQUI,
AQUI e AQUI já referido por nós] escreveu inúmeras crónicas e artigos nos
periódicos [como A Mocidade Livre, A Plebe, A Vitória, Ala Esquerda, Alma Nova,
Diário Liberal, Diário de Lisboa, Humanidade, Liberdade, Montanha, O Mundo, O
Clarim, O Laico, O Norte, O Povo, O Raio, Pátria, Pensamento, República, Voz da
Justiça, etc.], tendo sido, mais tarde, completamente silenciado [caso raro e
suponho único], por ordem pessoal do ditador Oliveira Salazar
[curiosamente, o ditador
Oliveira Salazar permite-lhe, bem como a Tomás da Fonseca, a publicação de
artigos anticlericais, como estratégia política de consolidação do poder
pessoal. De facto a campanha anticlerical que a Censura (Major Barradas) e o
ditador permitiu, pretendia insinuar ter o ditador “pouco poder” para combater o
jacobinismo e a maçonaria (da qual, Carlos Babo e Tomás da Fonseca, eram
obreiros dedicados. Babo foi iniciado em 1903, em Coimbra, no seu 4º ano de
Direito. E Tomás da Fonseca em 1906, também em Coimbra). A “armadilha”, ao que
parece, resultou e rapidamente, e após a “guerra anticlerical” verificada, consolidado
o seu poder pessoal com a “eliminação das resistências” por parte dos sectores
da Igreja e do grupo em torno do presidente Carmona, Salazar combate e persegue
ferozmente os mais ardoroso publicistas dessa contenda. Parece que o ditador,
chamando o major Barradas (censor-mor), disse-lhe o seguinte sobre Carlos Babo:
“esse senhor (sic), a partir de agora, não escreve nem mais uma linha” – refª
ms inédito de J.B.. E assim foi, salvo alguns artigos que Carlos Babo publica
no jornal “República”. Ao mesmo tempo, Carlos Babo é aposentado compulsivamente]
O livro “Espírito Errante”
publica-se quando Carlos Babo se encontra em trabalho administrativo, em S.
Tomé e Príncipe (Julho de 1915 a 1916). Durante esse “interregno colonial” em
S. Tomé, escreve, além do já referido “Espírito Errante”, os opúsculos, “A
Pérola do Atlântico” e “Pela Colónia de S. Tomé”.
A sua estadia em S. Tomé e o
seu labor no apoio às governações republicanas, deve-se a ter sido um amigo
pessoal, indefectível e até ao fim de António José de Almeida.
[tornam-se amigos quando
Carlos Babo integra a Comissão Republicana de Felgueiras e a partir daí, pela militância
republicana e a comunhão maçónica, a amizade ficou para sempre; na verdade,
Carlos Babo é (1908) nomeado advogado do Directório (PRP), sob pedido de A.
José de Almeida a Bernardino Machado, tendo sido incumbido, em especial, de
defender em tribunal os elementos da Carbonária; não por acaso, a casa onde, na
ocasião, viveu com o seu (também) amigo de sempre, Manuel Bravo, foi-lhe acertada
por Albertino da Costa Feio, seu futuro sogro, amigo de A.J.A. e maçon da Loja
“Comércio e Indústria” (a casa ficava na rua dos Correeiros, 205, antigo templo
maçónico); depois, a 6 de Outubro de 1910, torna-se chefe de gabinete de A.J.A,
ministro do Interior do governo provisório, continuando a ser sucessivamente,
ao longo das várias governações republicanas, seu secretário pessoal, ao mesmo
tempo que chefiou a Repartição da Direcção geral de Instrução Primária e,
também, secretário Geral do Ministério; foi A.J.A. que, por volta de Maio de
1915, lhe “preparou” a nomeação para o cargo de Chefe dos Serviços de Curadoria
Geral dos Serviçais, acumulando com Juiz da 2ª Vara, em S. Tomé e Príncipe; refira-se,
ainda, que António José de Almeida foi padrinho no seu casamento com Judite
Costa Feio, realizado a 19 Julho de 1911 – refª J.B., ibidem]
J.M.M.
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