“Vasco a Regra de Ouro” –
por António Valdemar
[Texto de António Valdemar para o Catálogo da Exposição “Vasco de Castro Cartoons. Ena pá … cá está ele outra vez!”, a decorrer até ao próximo dia 30 de
Abril de 2019, no Museu Rafael Bordalo Pinheiro, ao Campo Grande]
“Vasco,
no seu melhor, nas várias dimensões da sua energia criativa, na visceral
contundência da intervenção satírica, dispersa em jornais, em revistas e outras
publicações, encontra-se, a partir de agora, no Museu Rafael Bordalo Pinheiro.
Estamos
perante cerca de uma centena de trabalhos a propósito de figuras e
acontecimentos nacionais e internacionais das últimas décadas e, ainda, de
comentários a episódios do quotidiano. Pertenciam à coleção de um amigo de há
longos anos, e sempre presente nas horas boas e más, Mário Beja Santos, que
decidiu oferecer este espólio tão diversificado ao Museu Rafael Bordalo
Pinheiro. É um contributo muito significativo para a valorização do património
cultural de Lisboa.
Referência
obrigatória do desenho de imprensa, Vasco [Agostinho Vasco da Rocha e Castro],
nos anos 40, enquanto frequentava o liceu, em Vila Real de Trás-os-Montes,
despertou a sua vocação através da leitura d’O Mosquito (criação inovadora de
Eduardo Teixeira Coelho, o inesquecível ETC, um açoriano universal cujo
centenário do nascimento decorre em 2019), ao mesmo tempo que, também,
descobria Picasso. A Guernica comunicou-lhe o gosto radical e excessivo das
formas. No Paris Match, conheceu os desenhos de Siné, Bosc e Chaval. Durante os
anos 50, na Faculdade de Direito de Lisboa, em vez de estudar os manuais, as
sebentas e os códigos preferiu o Grupo Cénico da Faculdade de Direito, os
Jograis de Lisboa e a tertúlia surrealista do Café Gelo.
Logo
que principiou a guerra colonial Vasco radicou-se em Paris e só regressou a
Lisboa, após o 25 de Abril. Viveu e sentiu com intensidade a Revolução dos
Cravos. De 1961 a Abril de 1974 residiu, quase sempre, em Montparnasse. Ali
chegavam notícias de Portugal. Embora visado pela censura, o suplemento do
Diário de Lisboa, A Mosca trazia as Cartas da Guidinha, assinadas por Manuel
Pedroso, um dos pseudónimos de Luis de Sttau Monteiro. Fazia a autópsia
possível da esclerose múltipla do regime, em desespero com a Guerra Colonial, sem
controlar a emigração crescente de intelectuais e de trabalhadores; a resolver
com a polícia de choque, os gorilas e a prisão em Caxias, no Aljube e em
Peniche, o recrudescimento das manifestações sindicais e dos protestos nas
universidades.
Foi
no tempo irrepetível dos textos malditos de Luís Pacheco e Mário Cesariny; da
rebeldia poética de Alexandre O’Neill, de Alberto Pimenta, da ferocidade de
Natália Correia; das crónicas panfletárias de Artur Portela, do sarcasmo
escaldante de José Vilhena, na História Universal da Pulhice Humana, na Branca
de Neve e os 700 Anões, no Tenha Maneiras e no Filho da Mãe. Custou-lhe o
vexame e as torturas nos interrogatórios da PIDE, a prisão no Aljube, em Caxias,
a apreensão dos livros.
No
Dinossauro Excelentíssimo, Cardoso Pires desmascarou Salazar e a classe
política que o sustentava. No Delfim, Cardoso Pires também desmentiu as falsas
promessas anunciadas por Marcelo Caetano. Permanecíamos, orgulhosamente sós,
com a mesma política e as mesmas instituições repressivas. Apenas mascaradas
com outros nomes.
Nos
jornais, no parlamento e nos púlpitos – de quase todas as dioceses –
manifestavam regozijo com a reabertura do Tarrafal pelo ministro do Ultramar
Adriano Moreira e aplaudiram o encerramento pelo ministro da Educação Galvão
Teles da Sociedade Portuguesa de Escritores, pela atribuição do Grande Prémio
da Novela a Luandino Vieira, na altura preso político no Tarrafal, já com a
designação de Campo de Chão Bom, conforme os termos do decreto governamental,
para a reclusão dos implicados na luta pela autonomia e a independência das
colónias.
O
universo intelectual e a formação artística de Vasco desenvolveram- se e
consolidaram- se em Paris. Seguiu de perto a Figuration Narrative, o pop
francês. Participou em seis ou sete filmes, envolveu-se nos movimentos
underground, nas barricadas do Maio de 68, no ativismo da extrema-esquerda.
Colaborou, lado a lado, com os maiores cartunistas e em jornais e revistas de
prestígio. Por exemplo, em Le Monde, no Fígaro, no Canard Enchainé, no Hara-kiri.
O Canard Enchainé acolheu o rasgo de gerações sucessivas. O grupo Hara-Kiri/ Charlie-Hebdo
e L'Enragé, acompanharam o Maio de 68. Época áurea, na Europa e nas Américas,
da caricatura e do cartum, assinalada com a agressividade de Siné, o inconformismo
de Chaval e de Bosc; a estilização sofisticada de Sempé, o imaginário de Topor,
de Steidman e de Scarfe. E, ainda, a irradiação de Steinberg e de Levine.
Mal
chegou a Lisboa, Vasco continuou a militância política. No jornal Página Um foi
tudo e fez tudo, na fase explosiva do PREC. É no final dos anos 70 que atingiu
a maturidade e uma expressão própria ao privilegiar as virtualidades da linha e
do pingo da tinta-da-china, numa síntese entre o grafismo satírico e a pintura
a negro, numa reinterpretação contínua do expressionismo.
Foi
no decurso dos anos 80 que Vasco ganhou notoriedade no Diário de Notícias. O
jornal ainda não perdera a expansão que o levava a todo o pais. Estabelecemos
fortes relações de convívio e uma sólida amizade que resistiu a inúmeras
vicissitudes. Ao fim da manhã debatíamos temas de ilustrações para a página de
opinião e para o suplemento Artes e Letras. Vasco encontrava-se em pleno
apogeu, e enviava em tempo útil, retratos, caricaturas e cartunes solicitados e
que saiam quase todos os dias com o maior destaque.
Fernando
Pessoa motivou sucessivas e arrojadas interpretações de Vasco, com uma visão
original (celebrada por Vergílio Ferreira) e que ultrapassaram a iconografia
imposta por Almada Negreiros e também pelas fotografias de Horácio Novais, ao
surpreender Pessoa nas ruas de Lisboa umas vezes só, outras com amigos íntimos.
Mas
não foi apenas Pessoa. A pretexto de efemérides do fim do século passado Vasco
recriou escritores como Herculano, Eça, Aquilino, Nemésio, Jaime Cortesão e
Teixeira Gomes; poetas como Antero, Junqueiro, António Nobre, Cesário Verde e
Camilo Pessanha; artistas como Stuart Carvalhais e Amadeu de Souza- Cardoso; e,
sobretudo, Camilo, uma das suas indisfarçáveis paixões literárias, para
aprofundar, no homem e no escritor, o sentimento trágico de vida.
Vasco
fez parte dos fundadores do Público, da equipa escolhida pelo diretor Vicente
Jorge Silva. Colaborou, assiduamente, e não se limitou ao retrato e à
caricatura de protagonistas e fantoches políticos e sociais. Os recursos
imaginativos de Vasco abrangeram as consequências da poluição, os efeitos da
tecnologia, as desigualdades sociais, o capitalismo selvagem, o consumismo
desenfreado, as situações e perplexidades da condição humana.
Todavia,
a direção em exercício do Público, a partir de 1 de Setembro de 2008,
prescindiu a colaboração de Vasco e cortou-lhe a remuneração mensal que
recebia, desde o início do jornal. Vasco ficou sem a sua única fonte de
subsistência e sem espaço de intervenção nos jornais e revistas.
Num
balanço sumário da obra e da vida de Vasco podemos concluir que procurou
manter-se fiel à diretriz de Rafael Bordalo ao salientar na apresentação do
programa editorial do António Maria o propósito firme de «ser oposição
declarada e franca aos governos e oposição sistemática às oposições».
O
legado de Bordalo, patrono desta Casa Museu, o seu distanciamento sempre dos
poderosos, dos interesses instalados, dos lugares de privilégio, também se
deparam na posição crítica de Vasco e que tem sido a regra de ouro da sua
conduta pessoal e profissional em face da prepotência e o arbítrio da classe
política, dos comportamentos dúbios, dos negócios escuros e das rotinas
confortáveis.
A
memória e a identificação com as origens - e esta circunstância nunca poderá
deixar de ser mencionada - incutiram em Vasco as raízes cósmicas, os vínculos
ancestrais, toda a força telúrica que se transmite no ar que se respira,
penetra no sangue, circula nas veias e impulsiona um sopro criador de liberdade
e um sentido de amplitude universal que, onde quer que esteja, o evidencia
sempre como trasmontano, português, ibérico, europeu e cidadão do mundo”.
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