segunda-feira, 26 de outubro de 2020

AMÁLIA, SEM SUCESSORES?

 


Amália, sem sucessores?” – por António Valdemar, in Correio do Ribatejo

A advertência de Eduardo Lourenço ao considerar que Amália «morreu no seu século e não passou desfigurada para um tempo que não era o seu»

O Fado na sua conceção intemporal, na sua expressão literária ou nas derivas populares associadas à realidade social e cultural tem sido, nos seculos XIX e XX, objeto de estudos eruditos, de ensaios críticos ou de obras de criação literária da autoria de muitas personalidades ligadas à Academia das Ciências. Os exemplos multiplicam – se até chegarmos a Amália Rodrigues.

Procuramos sintetizar, numa retrospetiva sumária, subordinada ao tema Amália, a Academia e Académicos os seguintes autores e respetivas obras: Teófilo Braga, em 1868, numa interpretação das raízes do povo português (que antecedeu investigações antropológicas e etnográficas de José Leite de Vasconcelos) deu honras de transcrição integral dos versos recolhidos na tradição oral («Chorai artistas chorai…») que lamentam a morte da Severa. Henrique Lopes de Mendonça enalteceu o Fado e o introduziu (com a música de Alfredo Keil) nas estrofes de A Portuguesa que a Constituição da República, em 1911, transformou no Hino Nacional. Eça de Queiroz situou Lisboa na génese da invenção do Fado, enquanto Teixeira de Pascoais se pronunciou acerca das modalidades do Fado em várias localidades geográficas. Continua a emocionar a exaltação que Pascoais fez de Hilário em Coimbra.

Logo no início do seculo XX, Júlio Dantas escreveu A Severa. Foi a reconstituição para o teatro (e depois para um romance) tal como o próprio Júlio Dantas assim caracterizou: da vida de «uma flor pura, desabrochada na lama», que se evidenciou a cantar o Fado, na Mouraria. «Tinha o orgulho de não ter um ódio de ninguém, de ser feliz com a sua liberdade, o seu Fado, o seu amor ao Sol».

«A Severa» – prosseguiu – «era uma linda figura de rapariga, ousada e forte, o cabelo negro derrubado em bandós, a saia de ganga restolhando vitoriosamente, com o ar glorioso das criaturas que conhecem de perto os triunfos». (…) «Bastava vê – la e ouvi – la para irradiar forte perturbação» (…) «Era, ainda nervosa e rápida, agitada, de vez em quando, de estremeções violentos, os pendentes de oiro a luzir – lhe nas orelhas, os cabelos em tumulto a cada acento inquieta, e a chinela pespontada de branco, miúda e linda, a dançar – lhe na ponta do pé».

E acrescentou Júlio Dantas: «em cada momento diferente de si própria, e em cuja voz, ora doce, ora selvagem, ora branda como um cicio, ora dolorosa como um uivo, passavam todas as gamas, todos os tons, a macieza húmida do veludo, o tinido musical dos metais, os gorjeios, os soluços, os gemidos, as tempestades».

Naturalmente, seduziu e apaixonou «fidalgos turbulentos que corriam a súcia á força de murro e venciam a vida á força de alegria». Estreada, em 1901, Ângela Pinto foi a primeira protagonista da Severa. Em 1955, no Teatro Monumental, Amália Rodrigues foi a última protagonista que a representou. A Severa, durante mais de meio século, arrebatou plateias de teatros em de todo o país, com lotações esgotadas, e ficou a ser uma das peças de Júlio Dantas de maior audiência.

Fernando Pessoa ao depor num inquérito, no período em que escrevia os últimos poemas da Mensagem, definiu o Fado antes dos organismos oficiais que o elevaram a «canção nacional». «O Fado» – salientou Fernando Pessoa - «não é alegre nem triste. Formou–o a alma portuguesa, quando existia e desejava tudo sem ter força para o desejar». António Ferro, um dos fundadores com Fernando Pessoa da revista Orpheu- e o único elemento deste grupo que ingressou na Academia das Ciências -, ao desempenhar funções, nas décadas de 40 e 50, á frente do Secretariado da Propaganda Nacional (mais tarde o SNI, que o 25 de Abril extinguiu) fez a reabilitação institucional do Fado e promoveu a carreira nacional e internacional de Amália.

A saudade - uma das componentes no Fado e da identidade portuguesa - foi aprofundada por outros académicos: António Quadros, Afonso Botelho e António Braz Teixeira. E também de Urbano Tavares Rodrigues que – sem afinidades ideológicas com a Filosofia Portuguesa -, prefaciou e selecionou a antologia A Saudade na Poesia Portuguesa.

Mas no ensaio crítico A Mitologia do Fado – fortemente marcado por António Sérgio, pela sua pedagogia ética e pelo seu magistério cívico - António Osório apresentou as conotações negativas do Fado sempre que faz a apologia do vício e do crime.

A primeira história do Fado deve-se, em 1903, a Pinto de Carvalho (Tinop) que não foi académico, mas dois académicos e seus contemporâneos, Alberto Pimentel em A Triste Canção do Sul e Albino Forjaz de Sampaio, no Livro das Cortesãs (de parceria com Bento Mântua) avultam entre os precursores da História do Fado. O académico Luís Francisco Rebelo (a propósito ou não de Amália) mencionou, neste e noutros contextos, os que não foram da Academia das Ciências como Fernando Pessoa, Hernâni Cidade, Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires e José Gomes Ferreira, em diversos capítulos, da História do Teatro Português.

A polémica desencadeada quando Amália resolveu cantar Camões provocou uma guerrilha de intelectuais. Assistiu–se á contestação veemente de José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires; e á defesa calorosa dos poetas David Mourão Ferreira e Alexandre O Neil e, ainda, de Hernâni Cidade, a autoridade universitária, daquela época, em matéria camoniana. Surgiu, entretanto, o louvor de Amália por Augusto de Castro. Era, na época, o histórico diretor do Diário de Notícias e o mais antigo sócio efetivo da Academia das Ciências, admitido ainda nos últimos anos da Monarquia, quando também entraram Júlio Dantas, António Correia de Oliveira e Carlos Malheiro Dias. Decidiu Augusto de Castro intervir num editorial com o título Cantar Camões.

Constituiu uma surpresa para muitos que não conheciam a rebeldia pessoal e profissional que se ocultava, no jornalista que soube lidar, e em três ou quatro regimes tão contrastantes, com as imposições e as conveniências das sucessivas conjunturas políticas. Augusto de Castro considerou, então, que a obra de Camões não se poderia restringir aos estudos eruditos, repletos de notas de pé de página, às intervenções circunspetas das Academias.

O génio de Amália (voz do mar e do vento, voz de um povo que é Portugal a andar pelo mundo, nas palavras de Augusto de Castro), ao interpretar poemas e um soneto de Camões, estabelecia a aproximação direta com todos os públicos. E de tal modo que o próprio Camões, se fosse vivo, seria o primeiro a congratular–se com a expansão que Amália atribuiu á sua poesia. Foi o ponto final na controvérsia.

Poetas tão diversos, mas sócios efetivos, da Academia das Ciências, ganharam amplitude através da voz de Amália. Menciono, por exemplo, Manuel Alegre (Trova do Vento Que Passa), David Mourão Ferreira (Varina), Teresa Rita Lopes (Amor sem Casa) e Vitorino Nemésio (Décima de Silvio e Silvana).

Sem aludir, por motivos mais que óbvios, a ensaios e a artigos de jornal da minha autoria, cito outros académicos como Fernando Dacosta que enquadraram Amália na sociedade em que viveu e atuou recorrendo, com a garra do repórter, ao impacto dos testemunhos. Ou, então, Agustina Bessa Luís que retratou Amália cruzando os demónios e os anjos que reaparecem nas sombras e claridades da Sibila, um dos seus primeiros livros e onde pôs tudo o que, durante mais de meio século, repetiu, com as suas habituais digressões, através dos outros livros que publicou.

Referência obrigatória é a de Eduardo Lourenço. Tudo que escreveu sobre Amália está sistematizado por João Nuno Alçada na organização das Obras Completas. Para o livro de Jean-Jacques Lafaye Amalia florilège redigiu Eduardo Lourenço um prólogo que intitulou – Saudade, melancolia feliz. No manuscrito, guardado no espólio na Biblioteca Nacional, acrescentou: “À memória de Teixeira de Pascoais».

Julgo que será de recordar, ainda, que - no dia da morte de Amália – também Eduardo Lourenço declarou perentoriamente: “Amália morreu no seu século. Não passou desfigurada para um tempo que não era o seu. Morreu sem sucessores». Caberá a outros estudiosos esclarecer se Amália ficou enclausurada no seu tempo ou se conseguiu alcançar projeção e continuidade no futuro.

Uma coisa, porém, é certa: Aquilino - que integra o património da Academia das Ciências - ao evocar Lisboa chamou – a «cidade de Ulisses e de Amália». E já neste seculo, por uma daquelas coincidências que nos surpreendem e quando menos se espera, Amália e Aquilino, sem nunca terem falado um com o outro, ficaram na mesma sala do Panteão Nacional.

Amália, sem sucessores – por António Valdemar [Jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências], Correio do Ribatejo, 23 de Outubro 2020, p. 10 | [resumo da comunicação proferida, no dia 13 de Outubro, no salão nobre da Academia das Ciências, na sessão comemorativa do Centenário de Amália, durante a qual participaram outros oradores] – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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