sábado, 9 de janeiro de 2021

O PÃO DE CADA DIA

Paulo Silva remeteu-nos mais um artigo sobre a questão da Censura, neste caso envolvendo a Diocese de Coimbra e o Bispo de Coimbra, em 1969, D. Francisco Rendeiro. Agradecendo ao autor a divulgação deste pequeno apontamento, inicialmente publicado na edição impressa do Jornal Terras de Sicó, para se perceber as movimentações que iam acontecendo e os critérios que utilizavam os censores perante situações mais ou menos semelhantes. Curioso este episódio, com alerta do bispo para uma situação que lhe merecia uma reflexão critica e as medidas que os censores utilizaram em Coimbra, já na fase do chamado marcelismo. Para ler abaixo:


D. Francisco Rendeiro (15.12.1915 +19.5.1971)

No dia 29 de Março de 1969, o jornal Correio de Coimbra publicava, numa rúbrica intitulada A Palavra ao Pastor, um artigo do bispo de Coimbra, Francisco Rendeiro, com o título "O pão de cada dia". O texto versava o problema da fome, mas não só da comida propriamente dita. Era a questão da privação, da ausência, utilizando o pão como metáfora. Reflectia igualmente a problemática da sua repartição. Vejamos um excerto do texto:

O pão de cada dia é necessidade que volta a sentir-se poucas horas depois de satisfeita; e como não está à mão de quem precisa, é mira dos trabalhos e preocupações, ao menos de noventa e nove por cento da humanidade. O formigueiro humano que, logo de manhã, sai de casa, para o campo, para a oficina, para o escritório e até para a escola, busca o pão.

[…] O pão de cada dia é o padrão de desenvolvimento da humanidade. Ouvimos dizer que nalgumas partes, por maldade dos homens, morrem de fome aos milhares, crianças e adultos. Há fome nas regiões desoladas pela guerra; e para além destas, também há fome em dois terços da superfície da terra.

Não é só de pão de trigo que há fome; há fome de instrução, de cultura, de convivência, de amor.

O pão de cada dia é também o símbolo mentiroso que encobre a ambição daqueles que o buscam para além das legítimas necessidades; são os ganhos desmedidos, são os lucros ilícitos, é a exploração dos fracos, é o tremendo problema da distribuição das riquezas.

O texto é mais longo. Mas é onde termina esta transcrição que está o cerne do problema que viria a eclodir: é que a Censura cortou esta última frase ao texto do bispo.

Valentim Marques (6-03-1937 + 5-06-2015) 

Esta situação gerou a indignação nos responsáveis da Gráfica de Coimbra, e o padre Valentim Marques (1937-2015) entendia que tal corte era inadmissível. O caso chegará ao conhecimento da PIDE, em Coimbra que, por sua vez, fará chegar a informação à sua sede, em Lisboa, através do inspector da delegação, Leite de Faria, nestes termos:

"Junto tenho a honra de remeter a V. Ex.ª a fotocópia da prova tipográfica do artigo intitulado “O PÃO DE CADA DIA”, continuação de outros já publicados no órgão da Diocese “CORREIO DE COIMBRA”, da autoria do Bispo de Coimbra D. FRANCISCO RENDEIRO, no qual os Serviços de Censura eliminaram a expressão “é tremendo o problema da distribuição das riquezas”, que em nada prejudicava o seu contexto.

O facto provocou forte reprovação dos responsáveis da Gráfica de Coimbra, encarregada da impressão do jornal, nomeadamente o Padre VALENTIM MARQUES, vincadamente manifestada na anotação por ele feita à margem: “ISTO É MISERÁVEL! Trata-se de um documento Pastoral, com que a censura nada tem a ver!”.

Como se verifica, até a PIDE achou despropositado o corte efectuado pela Censura

Já muito se escreveu sobre os critérios (ou a sua ausência) utilizados pelos censores.

Como referiu José Cardoso Pires, tal como os próprios escritores, também os censores praticavam a auto-censura, cortando por uma questão de precaução, para não deixar passar algo que a sua hierarquia considerasse depois ser perigoso e, por isso, riscavam quando farejavam a mais longínqua insinuação comprometedora.

No caso concreto, julgo que o teor do texto é bastante sugestivo e creio mesmo que, se não fosse um bispo a escrevê-lo, mas sim um jornalista, por exemplo, todo o texto poderia ter sido cortado. Visto por esta perspectiva, o censor em questão até terá sido benevolente no corte. Afinal, tratava-se do bispo de Coimbra! No entanto, aquele preciosismo na frase em questão terá custado ao censor algum “amargo de boca” posterior. Será?


(O artigo do Correio de Coimbra, 29-03-1969)

Paulo Silva

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