Os anos 20 do século
passado, são uma época de ouro, o
tempo em que nasceram, viveram, atuaram e
faleceram poetas, escritores, dramaturgos, ensaístas, investigadores
científicos e protagonistas políticos que intervieram, decisivamente, nas
grandes questões contemporâneas, que se encontram vinculados à projeção da
cultura e da sociedade portuguesa à escala nacional e, em algumas
circunstâncias a uma dimensão internacional. Eduardo Lourenço é uma dessas
grandes personalidades.
Eduardo Lourenço,
nasceu a 23 de Maio de 1923, em São Pedro do Rio Seco, o princípio ou o fim da
linha ferroviária da Beira Alta, o espaço de chegada ou de partida do comboio
que trazia ou levava notícias e pessoas para a Europa.
Fez Eduardo Lourenço, os primeiros estudos secundários no liceu da Guarda, na cidade que é ponto mais alto de Portugal. Ele próprio assim a caracteriza, num texto que passou a ser referência obrigatória: «o nosso mar de terra e de pedra é a meseta contígua, matriz de onde nos separamos, espécie de deserto, de onde durante séculos inquietos (…) esperávamos (…) os nossos próximos castelhanos». Também Eduardo Lourenço a classifica «a mais portuguesa das fronteiras», mas «lugar de um diálogo com aqueles que foram os nossos adversários durante seculos».
As comemorações
do centenário de Eduardo Lourenço terão início a 23 de Maio em São Pedro do Rio
Seco, em Almeida e na Guarda. Vão prosseguir, com congressos, seminários e em
colóquios em Coimbra, em Salamanca, em Bolonha, em Lisboa, em Évora e algumas
cidades do Brasil. Além de uma exposição em itinerância nacional e
internacional em cátedras e redes de leitorados. A Biblioteca Nacional de
Lisboa tem em preparação uma exposição bio-bibliográfica, que pretende ser o
mais exaustiva possível.
Numa carta a
Jorge de Sena escreveu perentoriamente José Rodrigues Miguéis: «sofro de uma doença ingénita, hereditária, crônica,
incurável que se chama Portugal». Há coincidências entre José Rodrigues
Migueis e Eduardo Lourenço, mas também há diferenças complementaridades entre
estes dois exilados políticos. Lourenço e citamos, por exemplo, duas obras: O
Labirinto da Saudade (1978) questionou
problemas muito mais complexos e muito mais profundos.
Ao deter-se em Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade (1999) sobre o modo como esse destino é miticamente
determinado, recorre ao o seu saber (histórico, filosófico, literário),
apresenta – nos uma imagem imparcial do ser português, na sua singularidade e
universalidade, espelho, onde, observando-se, pode conhecer-se e aceitar-se «tal como foi e é, apenas um povo entre os
povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa
imperfeição».
Logo na primeira
obra reunida em volume Heterodoxias
(1949) Eduardo Lourenço distanciou-se ideologicamente dos seus amigos mais
próximos. Sem fazer qualquer concessão política que o manteve sempre vigiado
pela polícia política, e também à ortodoxia católica identificada com o regime
de Salazar, Eduardo Lourenço rompeu com frontalidade contra a ortodoxia marxista
e comunista que dominava entre os intelectuais de esquerda.
Todos os ciclos da criação poética, todos os ensaios
filosóficos, todas as interpelações cívicas e todos os textos políticos de
Antero de Quental (1842-1891) foram objeto de estudo e interpretação de Eduardo
Lourenço, ao longo de mais de cinquenta anos. Encontram-se agora reunidos num
único volume com o título genérico Antero,
Portugal como Tragédia.
Para Eduardo Lourenço, Antero é «a maior referência intelectual portuguesa» e «o primeiro português que teve uma consciência trágica do destino humano». E justifica que vários ensaístas, para
retirar Antero do «lote dos suicidas anónimos», atribuem a procura desesperada
da morte a depressões patológicas, a uma peripécia subjetiva ou, ainda, a uma
tragédia sentimental, quando se trata do «último
ato de uma vida que desejou tocar a face de Deus e não a encontrou». A
essência do trágico resultado do «combate
a rosto descoberto que destrói uma por uma, com uma espécie de raiva triste,
todas as flores da ilusão, todas as esperanças que o nascer do dia oferece à
alma humana».
Antero – considera Eduardo Lourenço – marcou o início
da nossa modernidade, representa «o seu
próprio ato fundador». Verificou-se na criação poética – e esta é a
primeira leitura literária profunda que se faz a partir das Odes Modernas – não apenas ao nível da ideia, das incursões no universo da
filosofia; na poesia social, na «poesia
revolucionária do futura», mas ao abrir caminho ao imaginário de Cesário
Verde, de Camilo Pessanha e de Fernando Pessoa.
Teve, contudo, maior impacto na afirmação da
modernidade o discurso inaugural das Conferências do Casino (1871) Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Introduziu uma revolução
cultural que «nem é de natureza
literária, nem política, nem mesmo ideológica ou banalmente filosófica, embora
se traduza em todos estes planos, mas religiosa». Proposta sem precedentes
em Portugal «no círculo da religião, não
abstratamente visada, mas concreta, institucional», abrangendo todos os
valores intocáveis, desde os da Pátria aos da Justiça, desde os da Ordem aos da
Família.
Estabeleceu, pela primeira vez em público, um separar
das águas, «um ajuste de contas da nossa cultura com ela mesma»
Os escritos de Eduardo Lourenço sobre Camões, conferem ao autor de Os Lusíadas uma amplitude que ultrapassa todos os outros autores que escreveram em língua portuguesa. Destaca a importância que Camões assumiu como criador da Língua, como expressão de vida e de cultura. Mais do que através de qualquer outro escritor, é através de Camões que Eduardo Lourenço consegue pensar Portugal, essa enigmática personagem coletiva que está sempre no centro dos seus interesses e dos seus sentimentos.
Ao abordar alguns aspetos genéricos de algumas obras representativas de Eduardo Lourenço, quando se aproximam as comemorações do centenário do seu nascimento, julgo revestir-se de oportunidade e interesse transcrever uma passagem da última entrevista que concedeu, em 2017, ao jornal Público: «Portugal não é uma ilha, mas vive como se fosse. Talvez por uma determinação de quase autodefesa. O que me admira mais não é a preocupação constante que temos em saber qual é a figura que fazemos no mundo enquanto portugueses. Todos os países terão à sua maneira essa preocupação. É o excesso dessa paixão. É preciso que não estejamos sempre a viver um Ronaldo colectivo, um «nós somos o melhor do mundo». Reflete, em muitos aspetos, o que predominou no intelectual e, também, no homem de convívio.
Lourenlo 23 – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], publicado no Jornal Tempo Livre, Março-Abril de 2023 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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