O
que resta da obra de Guerra Junqueiro 100 Anos depois da apoteose? –
por António Valdemar, in E revista Expresso, 7 de Julho 2023
O mais lido e aclamado poeta
português, na transição do século XIX para o século XX, desencadeou as maiores
polémicas religiosas e políticas. Apesar de todas as consagrações, deixou de
ter a projeção literária que em tempos lhe foi atribuída
Cem anos depois da morte de Junqueiro,
glorificado no Panteão Nacional, será possível recuperar a leitura da sua
obra, tal como se verificou durante décadas? Os livros de português no
ensino secundário ainda reproduzem poemas de Junqueiro? Tanto quanto se pode
avaliar o culto de Junqueiro (1850 -
1923) circunscreve-se às manifestações que decorrem na sua terra natal, Freixo
de Espada à Cinta. Deixou de ter a amplitude que o situava na mais
elevada dimensão nacional.
A partir de 1915, a geração que lançou a revista Orpheu
– Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e Alfredo Guisado – abriu novos caminhos na literatura, em especial
na poesia. Em relação ao passado próximo, elegeu Antero, Gomes Leal e Cesário Verde entre os poetas
preferidos. Outros nomes do século XIX e XX também deixaram de ter o
reconhecimento que lhes era dispensado.
Junqueiro
faleceu a 7 de julho de 1923, em Lisboa, na casa da filha Maria Isabel, em Campo
de Ourique. Vivia-se um dos anos mais turbulentos da primeira República.
Assistia-se a uma «balbúrdia sanguinolenta», conforme Eça de Queiroz vaticinara, no In Memoriam de Antero (1896), a
propósito dos efeitos da implantação da República em Portugal. Entre numerosos
casos insólitos, que provocaram sobressalto, a 22 de maio, era morto a tiro, no
cemitério dos Prazeres, um gerente da Companhia União Fabril (CUF), durante o
funeral do Conde de Sabugosa, o último representante do grupo Vencidos da Vida,
do qual Guerra Junqueiro fizera parte.
Os atentados eram consecutivos. No dia da morte de Junqueiro, à saída do Tribunal de Defesa
Social, arremessaram três bombas a três juízes que ficaram gravemente feridos.
A falta de alimentos essenciais, como o pão, provocava greves impulsionadas pela
Confederação Geral do Trabalho. Predominava a inquietação, o medo e o pânico. Cunha Leal, que já pedira a pena de
morte, por ocasião da «noite sangrenta» do 19 de outubro de 1921, voltou a
apelar, numa conferência na Sociedade de Geografia, para a intervenção urgente
da Força Armada, a fim de repor a ordem pública e a estabilidade social.
UM
GÉNIO NO PANTEÃO
As exéquias de Junqueiro realizaram-se na Basílica da Estrela. O
funeral seguiu, diretamente, para os Jerónimos, na altura Panteão Nacional.
Ficou no espaço nobre da Sala do Capítulo, onde já estavam Herculano e Garrett. O
Governo – e com o apoio do Presidente da República António José de Almeida - pagou as despesas da trasladação e determinou,
em decreto-lei, que os funerais fossem nacionais. O cerimonial - que se prolongou
durante cerca de uma semana – constituiu uma apoteose cívica e cultural, enquanto
era enterrado, na maior obscuridade Basílio
Teles, um dos principais ideólogos da República.
Sepultado com todas as honras, Guerra Junqueiro continuava a ser classificado um génio, não
obstante as polémicas religiosas, políticas e literárias que desencadeou. Assim
o apareceu nas primeiras páginas dos grandes jornais e nos depoimentos de personalidades
com a responsabilidade de Teixeira de
Pascoais: «Guerra Junqueiro é um poeta genial. A sua lira é feita do mesmo
ouro que a de Apolo. A luz ri nas suas sátiras, mais belas do que as de
Juvenal. Este poeta é o Sol. Nenhum outro encarnou assim a natureza no seu milagre
deslumbrador e criador».
Era o poeta português mais lido e mais aclamado. A
Morte de D João, publicada em 1874, representou o início da consagração.
Tinha apenas 24 anos. Em poucos meses, esgotou uma tiragem de mil e duzentos
exemplares. Os êxitos repetiram-se até à morte. Sampaio Bruno não hesitou em salientar: «não existe, em literatura
alguma, paralelo que se lhe compare». Partilhou a mesma opinião Miguel Unamuno.
O renome de Junqueiro
acentuou-se, em 1885, n’ A Velhice do Padre Eterno. A crítica
indignada do Padre Sena Freitas
concorreu para numerosas reedições entre nós e no Brasil. Nunca houve em
Portugal uma acusação tão virulenta contra a igreja católica. Deu lugar a
uma polémica interminável. Atingiu a igreja católica desde as mais altas hierarquias
até ao pároco de aldeia.
Contudo, Junqueiro
nunca pôs em causa a existência de Deus, nem a figura de Cristo. Num poema
incluído na própria Velhice do Padre Eterno, confessou, sem margem para equívocos:
«creio que Deus é eterno e que a alma é imortal» (…) «Sim, creio que depois do
derradeiro sono, /há- de haver uma treva e há-de haver uma luz…».
Mas denunciou, com energia, a conduta do clero, os abusos
sexuais, o envolvimento descarado na rotina político partidária. A educação de
muitos jovens era orientada para o sacerdócio. No poema Como se faz um Monstro
descreve a recomendação habitual de muitos pais aos filhos: «Hoje Padre é melhor
que ser Doutor» (…) «Quando o abade morrer hás-de vir para cá./ Despacha-te o
doutor nas Cortes: quando não/ votamos contra ele, e foi-se a eleição» (…) «Toca
para o seminário. Eu quero ir para a cova /só depois de te ouvir cantar a missa
nova». Garantia um futuro próspero. A carreira eclesiástica abrangia os maiores
interesses pessoais e institucionais. Reforçava o poder em todas as instâncias.
POETA
DE CAUSAS
As questões políticas e sociais mobilizaram, sempre, a atenção
de Junqueiro. Foi um poeta de causas
que de interesse público. Enumeramos, por exemplo: A Vitoria da França,
sobre a Republica em França, 1870; A Espanha Livre, acerca da
instauração da Republica, em Espanha, 1873; A Fome no Ceará, um dos
grandes flagelos no Brasil; A Lágrima (por ocasião do incendio do Teatro Baquet, no Porto); e, ainda, O
Crime, contestação ao Ministro da Justiça do assassinato a um militar.
«Contra o braço da forca e contra a guilhotina,/ eu que proscrevo o algoz, eu
exigi -lo- ei/para enforcar somente esse bandido – a Lei».
Integram-se, neste contexto, O Finis Pátria, em 1890,
e, sobretudo, a Pátria, em 1896. Basta citar que uma tiragem de seis mil exemplares
– caso sem precedentes em Portugal – vendeu-se em cinco dias. Na Pátria
arrasou com ferocidade a dinastia de Bragança. D. Pedro V foi a exceção. Despedaçou o rei D. Carlos, a corte que o rodeava, os
chefes dos partidos que permaneciam à frente das instituições. Protagonista e espectador
dos acontecimentos quotidianos, Junqueiro
interveio nas guerras e nas guerrilhas que agitaram o País, tais como o Ultimatum
de 1890, a Revolução Republicana do 31 de Janeiro. Tudo quanto
precipitou o fim da Monarquia e acelerou a instauração da República.
Elogiou inclusive o regicídio.
«Lamento de olhos enxutos» – e citamos para que não haver dúvidas – «a execução
do monarca. Mas se tivesse o dom de o ressuscitar não o levantava do túmulo.
Deploro angustioso a morte do príncipe. E diante dos cadáveres dos homicidas
descubro-me ajoelhado, com lágrimas de piedade, e, porque não hei-de confessá-lo,
de adoração e carinho».
A glorificação de Junqueiro prosseguiu com Os Simples, 1892, A
Oração ao Pão 1902 e a Oração à Luz 1904. Três livros da
última fase voltada para a exaltação da família e para celebrar a paisagem
natural de Trás os Montes e do Alto Minho e a paisagem ideal sonhada em
explosões de lirismo. Revela um panteísmo transcendente, sem as ironias e os
sarcasmos que lhe atribuíram notoriedade.
Cumpria-se o vaticínio de Antero
de Quental, numa carta de agosto de 1874 a Oliveira Martins, da qual resumimos o seguinte passo: «Estou
curiosíssimo por saber o que Você dirá de Guerra
Junqueiro e d’ A Morte de D João. Mas que admiráveis páginas! Há- de fazer-se
daquele rapaz um grande poeta – nos limites em que hoje se pode ser grande
poeta – um eco vibrante das grandes ideias do nosso tempo».
REAÇÕES
CRÍTICAS
Esta circunstância não impediu que, na Revista Portugal,
dirigida por Eça de Queiroz, o crítico
mais arguto da Geração de 70, Moniz
Barreto (1863 - 1896), prematuramente falecido, sem dissecar as
controvérsias políticas e religiosas, se ocupasse de Guerra Junqueiro, no âmbito estritamente literário, contrariando a
unanimidade de opinião que predominava. Assinalou «os recursos da expressão, a sumptuosidade
e o vigor da frase, a sábia gradação dos efeitos, a arte consumada de formular,
intimar, ornar e lançar à circulação um tema poético». Logo a seguir
acrescentou: «um vocabulário escolhido e nobre, uma adjetivação abundante e
nova, uma sintaxe regular e ampla», constituem «o segredo do seu prestígio».
Para concluir categoricamente: Junqueiro
é «muito mais orador do que poeta. Tem muito mais eloquência do que imaginação»
(Revista
Portugal, número 1, 1889).
Nos últimos anos da vida de Junqueiro,
publicou António Sérgio (1883-1969),
no primeiro tomo dos Ensaios uma extensa interpretação com o título: O Caprichismo Romântico do Sr.
Guerra Junqueiro». Teve, em Portugal e no Brasil, o maior impacto. Em
1928, Vieira de Almeida (1888 -
1962), em dois números da revista O Instituto, de Coimbra publicou o
estudo A obra de Guerra Junqueiro. Também surgiu mais outro estudo de António
Sardinha (1887- 1925), repleto de objeções e recolhido no livro póstumo
Purgatório
de Ideias (1929).
Intelectuais, quer da Seara Nova, quer do Integralismo
Lusitano formularam críticas à obra e à personalidade de Junqueiro. Lopes de Oliveira (1881 - 1971), biógrafo e memorialista de Junqueiro reagiu: «trata-se de um ataque
dos zoilos, mais ou menos obscuros, mas todos horríveis e despeitados versejadores.
Desenvolvia-se uma reação obscurantista, à conta da defesa da religião. Não só
se acusava o ateísmo (de Junqueiro),
mas descia-se à calúnia sobre a vida pública e particular».
O ensaísta Amorim de
Carvalho (1904 - 1976), procurou examinar as posições de António Sérgio e de Vieira de Almeida no livro, Guerra
Junqueiro e a sua obra poética (Porto, 1948). Teve por objetivo
«fazer justiça a Junqueiro, um dos
maiores poetas portugueses, e que, no dizer de Unamuno, foi «um dos maiores do mundo». «Toda a análise
interpretativa» – salientou – «que António
Sérgio fez, do pensamento científico e filosófico do poeta Guerra Junqueiro terá de ser rejeitada
como improcedente». Quanto a Vieira de
Almeida – comenta – «pelo exagero que assume, é toda ela, uma autêntica
cegueira, em que os exemplos e a tese – sem ele dar por isso – se voltam a cada
passo contra o detrator». Para Amorim de
Carvalho «O senso estritamente lógico – que nunca fez qualquer literatura
de mérito – encontra sempre contradições».
CENTENÁRIO
NO SALAZARISMO
O ano de 1949 não apagará os horrores da Segunda Guerra Mundial e,
no plano interno, os movimentos democráticos em torno da candidatura
presidencial de Norton de Matos. A
oposição encontrava-se retalhada. A PIDE multiplicava as prisões em todo o
país. Aproximava-se a 15 de setembro de 1950 a homenagem devida a Guerra Junqueiro.
Egas
Moniz proferiu a 14 de outubro de 1949 uma conferência no salão de
festas do Coliseu do Porto na qual propôs: «estamos no limiar do centenário do
Poeta, que passa no próximo ano de 1950. Homenagem de gratidão lhe deve ser
tributada, em todo o país, mas deve partir a iniciativa dos Homens de Letras do
Porto, para que tenha maior retumbância por esse Portugal além. Em cada cidade,
em cada vila, em cada aldeia, sejam lidos os seus versos. Deram-me o feliz
ensejo de dar o sinal de alvorada, poucos meses antes da comemoração de um dos
maiores poetas».
Ainda houve duas conferências no Porto: uma de Teixeira de Pascoais; outra de João de Barros. Entretanto, Egas Moniz recebia o Prémio Nobel. Mas
o apelo suscitado por Egas Moniz
passou a ser controlado pela censura e pela polícia política, até se organizar
uma Comissão Nacional presidida por Júlio Dantas. Inspirava total
confiança ao regime. Escrevera, em 1921, n’Os Galos de Apolo: «tem
sido em Portugal, no Brasil, na própria Espanha, o pai espiritual de algumas
gerações de Poetas».
Embora agnóstico – recorde-se que exigiu, em testamento,
funeral civil – Dantas não iria
afetar a estreita relação do Governo com a Igreja. Respeitava a cartilha
definida pelo cardeal Cerejeira,
antes de ascender ao episcopado. Consta das conferências promovidas pelo CADC
e compiladas no livro «A Igreja e o Pensamento Contemporâneo»,
1924. Recorde-se que o prof. Sílvio Lima
(1904- 1993) desmontou, factualmente, em 1930, as teses de Cerejeira em «Notas
críticas ao livro A Igreja e o Pensamento Contemporâneo».
Custou-lhe a demissão de professor da Universidade de Coimbra, dificilmente
recuperada.
«TROVOADA DE LATA»
Mesmo em cima da morte, do funeral, da tumulização de Junqueiro no Panteão Nacional, Raul Proença sem deixar de enaltecer
méritos ao poeta teve a coragem de contestar o génio de Junqueiro (Seara
Nova, Julho de 1923): «Falta- nos o sentimento da medida» – observou –
«a rigorosa disciplina das qualificações. Toda a nossa crítica se encerra nos
dois termos antinómicos dum dilema: a apoteose ou a descompostura. Resvalamos
sempre sobre o um plano inclinado: deixamo-nos ir à mercê do impulso laudativo
ou pejorativo». ( … ) «Sem a mínima preocupação de fazer restrições, de ver os
defeitos ou as qualidades daquilo que se elogia ou se censura. Não há por isso
critica em Portugal».
A propósito dos versos introdutórios d’A Morte de D João não
hesitou Raul Proença em afirmar que
era uma «trovoada de lata hoje ilegível» para concluir: «Junqueiro ocupa apenas
um dos primeiros postos, entre os nossos escritores de segunda ordem. Mais
direito do que ele entrar nos Jerónimos» – acrescentou - têm certamente Eça de Queiroz e Antero – de primeiro plano, esses, sem dúvida. O tempo se
encarregará de pôr os homens e as coisas nos seus lugares, quando se fizer a
distância que permitirá avultar os gigantes, a reduzir os que não foram à sua
exata proporção».
É evidente que, mais do que previa Raul Proença, em 1923, deixou Guerra Junqueiro de ter a projeção literária, que lhe foi atribuída. Perdura, contudo, a veemência do inconformismo e do protesto, e que ganha atualidade, perante a degradação política e social, que se tem intensificado, nos dias que vivemos, e de forma preocupante.
O
que resta da obra de Guerra Junqueiro 100 Anos depois da apoteose? –
por António Valdemar [jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da
Academia das Ciências], in E revista do Expresso, 7 de Julho de 2023, p.32-35 –
com sublinhados nossos.
J.M.M.
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