terça-feira, 23 de setembro de 2025

O OUTRO AFONSO DUARTE – POR ANTÓNIO VALDEMAR

 

O Outro Afonso Duarte – por António Valdemar, in O Figueirense

A descoberta, no contacto direto com as populações, do modo de ser e de estar do povo português através de exemplos recolhidos no tesouro poético das quadras populares e na sabedoria dos adágios e provérbios.

Entre os grandes poetas do seculo XX, Afonso Duarte ocupa um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa e nas principais antologias da poesia portuguesa. Celebrou a energia cósmica da natureza, a exaltação panteísta da vida, o apego as raízes telúricas e humanas e, simultaneamente, os grandes valores universais que fundamentam a liberdade e a democracia.

Afonso Duarte (1884–1958) nasceu na Ereira, concelho de Montemor-o-Velho, no território tão característico do Baixo Mondego, onde nasceram outros poetas, escritores, artistas plásticos, mestres universitários e outras personalidades de projeção cultural, política e social. Todavia, a quase totalidade da vida pessoal, profissional e literária de Afonso Duarte decorreu em Coimbra em cuja Universidade se licenciou (Ciências Físico Naturais) e onde também exerceu o magistério secundário, sendo erradicado do exercício de funções, por motivos políticos, nas primeiras purgas efetuadas pelo governo de Salazar.

A conjugação do real e o imaginário manifesta-se com forte poder metafórico logo nos primeiros livros: Cancioneiro das Pedras [1912]; Tragédia do Sol Posto [1914]; Rapsódia do Sol-Nado e Ritual do Amor [1916] que serão revistos e selecionados, em 1929, num único volume Os 7 Poemas Líricos. Esta fase reflete uma proximidade com a poesia de Teixeira de Pascoaes e da doutrinação literária e estética difundida na revista A Águia e no movimento Renascença Portuguesa.

Um novo ciclo poético se vai evidenciar partir dos anos 30, documentado em livros de referência como Ossadas (1947); Post-Scriptum de um Combatente (1949); Sibila (1950); Canto da Babilónia (1952); Canto de Morte e Amor (1952); Lápides e Outros Poemas (1956-1957), reunidos, em 1956, na primeira edição da Obra Poética. Corresponde ao período em que Afonso Duarte se insere no ideário da Seara Nova, acompanha o movimento da Presença e, mais tarde, o movimento dos neorrealistas reunidos. Embora não tenha livros publicados no âmbito do Novo Cancioneiro, é um colaborador da revista Vértice. Carlos de Oliveira, Mário Braga e Joaquim Namorado, assinalam-se entre os seus amigos que frequentavam as tertúlias instaladas em cafés históricos de Coimbra.

Desde Cancioneiro das Pedras – editado em 1912 –, Afonso Duarte evidenciou uma relação possessiva com a terra natal e em todas as estações do ano: «As cheias vindas às casas! / Tudo afoga em dilúvio, ervilhal e giesta, /o próprio lar, as brasas! /o vento assopra ao desamparo, o vento grita, / como um louco varrido! /A Aldeia é um gemido». (…) «Asa do vento, como vens distante? /E o vento avança, o vento diz: mais longe!». É uma permanente reivindicação das suas origens: «canto o amor de meus campos e baldios/ meu casal que é uma ilha aos quatro ventos». A Ereira, desde então, passou a ser incluída na literatura portuguesa».

Mas além da obra poética, Afonso Duarte realizou, nos anos 20 e 30 do século passado, um trabalho pedagógico que mudou a orientação preconizada no ensino do desenho, rompendo com os métodos existentes, quer na instrução primária, quer nos estudos secundários. Encontra-se, pormenorizada em três ensaios: O Desenho na Escola, Barros de Coimbra (Lúmen, 1925); Carta Metodológica "do desenho decorativo"; e Os desenhos animistas de uma criança de 7 anos (Imprensa da Universidade de Coimbra, 1933). Ficou a ser um dos precursores da «educação pela arte», que seria desenvolvida, a partir dos anos 50 por Calvet de Magalhães (1913-1975), como professor e diretor da Escola Francisco Arruda, em Lisboa, e nas campanhas que, periodicamente, desencadeou no Diário de Lisboa.

Há ainda outra componente muito significativa na criação intelectual de Afonso Duarte: a investigação etnográfica publicada, através da Seara Nova, em duas obras que obtiveram, na altura, o interesse da crítica: O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa (1936) e Um Esquema do Cancioneiro Popular Português (1948).

No texto introdutório desta segunda obra referiu que: «a propósito de tudo, a gente do povo sabe uma quadra; uma sabedoria milenar que passou a herança poética (…) «impregnada de “nuances” afetivas próprias das nossas atitudes mentais», após o que justificou o sentido e oportunidade desta antologia: um «breviário de conceitos morais, formando corpo de doutrina sobre a honra, firmeza, fidelidade, prudência, diligência e persistência, confiança e franqueza, amor da família, e uma filosofia da experiência que é toda perdão, desculpa e paciência perante as fraquezas da vida».

Nestas duas obras de Afonso Duarte – que merecem ser reeditadas e lanço o apelo à Câmara Municipal de Montemor-o-Velho –, perdura o vínculo profundo que o ligava à Ereira e às singularidades dos Campos do Mondego, tão visível na sua poesia: «Sem esta terra funda e fundo rio/ que ergue as asas e sobe em claro voo; / sem estes ermos montes e arvoredos / eu não era o que sou».

Não se pode classificar uma investigação saudosista, à semelhança de muitas outras manifestações promovidas pelo salazarismo, tais como «Monsanto, a aldeia mais portuguesa de Portugal». Afonso Duarte repudiava todas essas incursões no passado. Basta recordar estes versos de forte contundência epigramática incluídos em Ossadas: «O antigo é a doença que eu mais detesto/ É viciar o que já foi virtude! O tornar ao Passado é sempre um resto».

Mas ao proceder à sistematização da poesia popular, Afonso Duarte teve por objetivo recolher quadras, trovas, adágios e provérbios que definem o comportamento do povo português através dos séculos: a humanização da natureza, os sentimentos afetivos, as virtudes e vícios, o riso e as lágrimas, a ironia e o sarcasmo que se aplicam às mais diferentes circunstâncias. Quantas «carapuças» existiam no tesouro do Cancioneiro popular que se poderiam aplicar ao regime político e ao próprio Salazar? A obra poética de Afonso Duarte e as outras criações em que se empenhou colocam-nos perante um notável poeta que associou sempre a literatura e a cultura à militância cívica.

O Outro Afonso Duarte” – por António Valdemar [Jornalista, carteira profissional número Um; sócio efetivo da Academia das Ciências], in O Figueirense, 27 de Agosto de 2025, p.21 – com sublinhados nossos.

J.M.M.

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