"Perante um país sufocado, deprimido e amordaçado pela ditadura de Salazar
ouviam-se, em períodos eleitorais, os ardinas de Lisboa, ao fim da tarde, que
gritavam ao anunciar a jornal "República". Fala o Rocha! Fala o
Rocha! Fala o Rocha... Eram os libelos, em forma de cartas, da autoria de
Francisco José Rocha Martins. Tinham como principais destinatários o
primeiro-ministro, Salazar; o Presidente da República, general Óscar Carmona
("o general de tomates cor de rosa" conforme o definiu Raul Proença);
o patriarca de Lisboa, cardeal Gonçalves Cerejeira, e outras personalidades das
cúpulas que asseguraram a manutenção e funcionamento das estruturas do regime.
Rocha Martins - jornalista ardoroso e combativo que se evidenciara, logo no
começo do seculo XX, entre políticos e intelectuais, e, fundamentalmente, junto
das camadas populares - tinha um percurso versátil, mas possuía capacidade de
enfrentar o poder constituído. Principiou a carreira num jornal monárquico, o
"Diário Popular", de Mariano de Carvalho; prosseguiu na
"Vanguarda", dirigida par Magalhães Lima, grão-mestre da maçonaria;
ligou-se depois a João Franco e à ditadura que implantou, no "Jornal da
Noite"; foi braço direito de Malheiro Dias na "Ilustração
Portuguesa".
Proclamada a Republica combateu-a no "Liberal". Editou os
panfletos "Fantoches", notas semanais escaldantes sobre
acontecimentos políticos arrasando Afonso Costa e a Partido Democrático. Foi
deputado no consulado de Sidónio Pais. Fundou e dirigiu a semanário
"ABC" (de 1920 a 1930) que apoiou a 28 de Maio e a arrancada do
general Gomes da Costa. Contava com a publicidade do Bristol Club - famoso
cabaré e urna das mais concorridas salas de jogo. Os anúncios do Bristol Club
estavam explícitos no alto das capas concebidas par Jorge Barradas, Stuart,
António Soares, Emmérico Nunes e outros artistas do Modernismo. Da redacção
faziam parte desde burocratas para serviços de expediente até nomes em ascensão
literária como Ferreira de Castro, Mário Domingues e Reinaldo Ferreira, a
mítico, mitómano e cocainómano Repórter X.
Rocha Martins dirigiu de 1932 a 1943 o "Arquivo Nacional", outro
semanário que divulgava factos, acontecimentos, biografias e memórias de contemporâneos
e de figuras de outras épocas, quase sempre marcadas pela controvérsia. Era
editor Américo de Oliveira, maçom e carbonário, chefe dos civis que resistiram
ao lado de Machado Santos, na Rotunda.
Quando muitos se surpreendiam por vê-lo, com a oposição republicana, a insurgir-se
contra o salazarismo e a reclamar a República, Rocha Martins, justificava que
se libertara da fidelidade ao rei e a monarquia com a morte de D. Manuel, em
Julho de 1932.
No "ABC" e no "Arquivo Nacional" publicou (para depois
reunir em volume) João Franco, a sua política, os seus políticos e adversários;
os reinados turbulentos de D. Carlos e D. Manuel; os governos de Pimenta de
Castro e Sidónio Pais; a tentativa de restauração monárquica, liderada por
Paiva Couceiro, em 1919; os bastidores e o triunfo da ditadura militar de 1926
e a chegada ao poder de Salazar.
Na continuidade dos folhetins de Pinheiro Chagas, Campos Júnior e Eduardo
Noronha, a história em rodapé de jornais e em fascículos a vender ao domicílio,
lançou com efabulação patriótica, emocional e satírica, diversos romances e
editou com prefácio e notas "Palmela na Emigração", que lhe valeu o
acesso a sócio correspondente da Academia das Ciências, a partir de 13 de Março
de 1916. Os historiadores e eruditos apontavam-lhe falhas e erros. Foi, mais
tarde, rejeitada a candidatura a sócio efectivo da Academia das Ciências.
Viveu exclusivamente da escrita. Encerradas as redacções do "ABC"
e do "Arquivo Nacional", repartia-se em colaborações assíduas no
"Diário de Notícias", no "Primeiro de Janeiro", no
"Comércio do Porto" e no "República". A popularidade de
Rocha Martins ganhou nomeada no tempo do MUD, na candidatura de Norton de Matos
e de Quintão Meireles, devido as cartas, estampadas a toda a largura da primeira
página, do jornal "República".
Privou de perto com muita gente de todos os sectores políticos e
partidários. Poi iniciado na maçonaria - conforme comprovei no arquivo do
Grande Oriente Lusitano (GOL) - na loja Simpatia e União, a 31 de Maio de 1906,
tal corno Carlos Malheiro Dias, em 1896, na loja Luís de Camões, no tempo em
que lá estava Luz de Almeida. Ambos saíram mas ficaram a conhecer o que lhes
interessava. Um contínuo de "O Século" que pertencia à Carbonária, a
troco de pequenos favores, deu a Rocha Martins muitas informações, a avaliar
pelo que escreveu em "Vermelhos Brancos e Azuis".
Rocha Martins deixou a sua biblioteca a Sociedade Voz do Operário, mas é
muito difícil de consultar. Escreveu memórias políticas e pessoais. Ao falecer,
a 23 de maio de 1952, Rocha Martins tinha em preparação a "História da
Ditadura Portuguesa" e o acabamento de pormenores das memórias, cujo
manuscrito tive oportunidade de ver, numa letra quase ilegível. Encontrava-se
na posse de Jaime Carvalhão Duarte, já falecido, um dos filhos de Carvalhão
Duarte, director do "República". Disse-lhe que estava disponível para
anotar e publicar, desde que o texto fosse decifrado.
As memórias de Rocha Martins
não foram legadas a Fundação Mário Soares, com outros documentos, por Sérgio
Carvalhão Duarte e sua mulher, Luísa Irene Dias Amado. Tem contributos de muito
interesse - pelo que verifiquei na altura - para esclarecer, no contexto dos
séculos XIX e XX, versões bastante divergentes da História conhecida e do papel
atribuído a alguns protagonistas"
ANTÓNIO VALDEMAR - "Rocha Martins Contra o Poder, escrever, escrever", in Revista do EXPRESSO (100 Anos 100 Portugueses), 1 de Junho de 2013, p. 62 - sublinhados nossos.
J.M.M.
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