“O novo Sardinha é bem-falante. Na televisão, não
hesita. Peremptório mesmo quando dubitativo. Em estilo casual, casaco e
colarinho desabotoado. Inteligente e com cara de bom menino. Praticante de um
novo populismo, com a chancela atractiva do mercado de massas.
Com obra feita e de reconhecido valor, consta, diz tudo o que lhe vem à real gana. Mas, à cautela, nunca foi em conversas: à política chegou como intelectual com créditos firmados e não como funcionário de partido. Não é como os outros que chegaram bem mais alto, mas à custa de diplomas de origem duvidosa.
Subiu a pulso. Logo após, desfez-se da escada
para que mais ninguém lá chegasse. E adoptou os tiques que observou nos snobes.
Inspirado em Maurras, misturou-o num blend com outros, tudo autores já
publicados pelo Liberty Fund, em encadernações bem cheirosas. Monárquicos,
conservadores e uma elite ignara começaram a vibrar com as suas realidades
pesadas, donde não está ausente uma ponta de crueldade. E ele não se faz
rogado.
– Ena, como vai lançado no seu gosto pela
polémica! Estou certo que um dia conseguirá beijar a mão do putativo rei. Ou
será que lhe dão mesmo um ministério?
Às suas audiências dá aquilo que elas querem.
Indigna-se frente ao despesismo do Estado. E despreza essa esquerdalha de
jovens investigadores que, no fundo, não passam de uns comunistas ou ainda
pior...
Exímio na arte do paradoxo, partilha com os que
não se souberam arranjar uma óbvia denúncia: porque tarde chegaram, foram todos
enganados quando alimentaram falsas expectativas em relação a um futuro
dedicado à ciência e à investigação. No seu realismo cru, nega-lhes a carreira.
Porquê? Simplesmente, porque o despesismo é insustentável. E essas crianças
grandes, que se deixaram embalar pelo estudo e pela pesquisa, têm de cair na
realidade. Na dura realidade, entenda-se, da sua inutilidade.
Não há alternativa, para tanta evidência. Só
talvez a emigração, sempre ela, pode oferecer uma outra via. Porque lá no
estrangeiro – provavelmente porque foram todos enganados por um outro
trapaceiro – ainda continuam a investir na pesquisa e a preocupar-se em acolher
novas gerações de investigadores.
– Olha, Daisy, os coitados lá na estranja, caíram
na trapaça. Os tristes continuam a financiar publicamente a investigação.
É que se o despesismo é inútil, porque se
constituiu num fardo insustentável, é também escusado pensar-se que exista
alguma relação causal entre investigação e desenvolvimento. Tudo uma série de
inutilidades. Retire-se, pois, o Estado de tudo isto e deixem em paz os
decisores políticos – ministros ou responsáveis por agências de financiamento
público – que nunca se deveriam ter envolvido em programas criadores de falsas
expectativas e de despesas em espiral.
Devolva-se, isso sim, a responsabilidade às
universidades, que se devem comportar de forma autónoma. Mas, esclareça-se
desde já, em relação aos que mandam nestas últimas, que devem deixar de se
preocupar com o aumento do seu número de investigadores e com a integração de
novas gerações na pesquisa. Directores e responsáveis, parem com tais lamúrias
insensatas! Basta de tal tipo de erro crasso! Malditos sejam os que o fizerem,
sobretudo em jornais! Lá na utopia do propalado liberalismo, as universidades e
os centros de investigação nem sequer deveriam depender dos fundos públicos e
do Orçamento.
– Olha, Daisy, por que razão não estamos na Grã-Bretanha
ou nos Estados Unidos, onde as grandes universidades privadas são mesmo
autónomas financeiramente, com os seus states e endowments milionários? Isso é
que era bom para que o liberalismo de pacotilha se difundisse.
– Aqui, no terrunho, tirando as idas à televisão e as vendas dos livros a subir
em flecha, tudo o resto é uma chatice. Não que a pátria não exista, com as suas
tradições e gente importante digna de biografias que se vendem lindamente. Mas
o Estado, ao ter de assumir responsabilidades e ao não deixar crescer as
crianças que, na sua adolescência retardada, vivem à sua custa, cria esta
chatice, menino! Um autêntico ferro!
“Transforma-se o amador na cousa amada”, como o
trapaceiro com a trapaça. A trapaça dos últimos governos que criaram uma
ilusão, que enganaram as crianças grandes (pelo menos as que resistiram à
emigração) e que alimentaram falsas ideias acerca da criação de um sistema
científico. Uma tramóia insuportável, alimentada à custa das loucuras do
despesismo do Estado, com que é necessário romper.
O novo Sardinha vê tramóias em todo o lado,
porque constrói o mundo à sua imagem. Com a consciência das duras realidades,
chama a si a inimputabilidade e uma estratégia de vitimização. Aos seus amigos
sopra-lhes a ideia de que a investigação é coisa obscurantista. Por isso, há
que reduzi-la e dispensar os que a ela se dedicam. Melhor será fazer como
antigamente, só para alguns, muito poucos. E, num estilo sério, mesmo muito
sério, o Sardinha new age finge não suportar o estilo chocarreiro deste seu
retrato.
– Olha, Daisy, até que, se se tiver em conta o novo Álbum de Glórias de que este retrato chocarreiro faz parte, nem é assim tão mau. Verás que a notoriedade sobe.
Pouco importa que quem defende que o Estado se
retire – aliás, de onde nunca esteve, a julgar pelo que se faz por essa Europa
fora – continue a ser um funcionário público, que não abdica de nenhum dos seus
cargos e privilégios. A moral de apregoar aos outros aquilo que o próprio não
pratica só tem um fundamento: não somos todos iguais, os que já se safaram e
que são os beneficiários do sistema não querem partilhar com mais ninguém a
estabilidade e tudo o que é bom. A eles o mandarinato e os privilégios, aos
outros a dura realidade.
– Tudo o resto, menino, uma chatice em
relação à qual só me resta exprimir a minha dramática indignação: que ferro!”
Diogo Ramada Curto, in jornal PÙBLICO,24/01/2014, p. 49
J.M.M.
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