Henrique
Galvão, "A Minha Cruzada Pró-Portugal. Santa Maria" [ed. fac-similada], Livraria
Martins, São Paulo, 1961, p. 201.
Trata-se do volume nº
9, da colecção “Livros Proibidos do Estado Novo” (do jornal PÚBLICO), em versão
facsimile, que vem acompanhado do respectivo relatório oficial da censura. O livro,
de imediato proibido de circular “conta a história do sequestro do luxuoso
paquete Santa Maria, pelo Capitão Galvão, o próprio autor, a 23 de Janeiro de
1961. O objectivo era chamar a atenção do mundo para a longa ditadura
portuguesa e denunciar o regime ditatorial franquista de Espanha" [ler AQUI]
Sobre a obra, publicada
inicialmente no Brasil (1961) e posteriormente editada em Portugal com o título
“Assalto ao Santa Maria” (Edição Delfos, 4 de Julho de 1973), transcrevemos o
artigo publicado no mesmo jornal, por Álvaro de Matos, coordenador da
Hemeroteca Municipal de Lisboa [onde tem desempenhado um elevado trabalho de
serviço público, que todos lhe reconhecem] e Investigador Centro de Investigação
Media e Jornalismo.
► «A
primeira “libertação de uma parcela do território nacional”…», jornal PÚBLICO,
4 de Junho de 2014, p. 47 – por Álvaro de Matos (sublinhados nossos)
“Na ressaca do assalto ao Santa Maria, e aproveitando o seu
impacto mediático, Henrique Galvão (HG) publica no Brasil, em 1961, Minha
Cruzada Pró-Portugal. Uns anos mais tarde, em 1973, já depois da morte do
autor, o livro sai em terras lusas, com outro título, O Assalto à “Santa Maria”,
com a chancela da Delfos. A obra conta a história da “Operação Dulcineia”, nome
pelo qual ficou conhecido o plano de sequestro do luxuoso paquete
transatlântico português Santa Maria, orquestrada pelo próprio autor. Por sua
vez, “a acção deveria servir de rastilho a um levantamento popular que, no caso
português, poderia ser iniciado, segundo HG, em qualquer ponto vulnerável do Império,
onde começavam a surgir então os primeiros fermentos de rebelião nacionalista contra
a “política colonial tirânica de Salazar” (Barreto, 1999).
Através do choque provocado na opinião pública internacional,
HG, com um grupo de exilados políticos espanhóis liderados pelo Capitão
Sotomayor, pretendia chamar a atenção das democracias ocidentais para a situação
política ibérica. Mas O Assalto ao “Santa Maria” não se fica pelo registo dessa
acção verdadeiramente quimérica que, apesar de não ter atingido os seus fins,
constituiu um duro golpe na credibilidade do Estado Novo, mostrando o seu
crescente isolamento internacional. O livro incorpora também um dos mais violentos
ataques políticos feitos ao regime e ao carácter de Salazar.
Aquilo que HG classifica como “cenário político e moral” que, no
seu entender, justificava a tomada do Santa Maria. Esta devia ser vista como
“um propósito político e bem claro de rebelião”, e não como um acto de
pirataria, como pretendeu o regime. Salazar é pois descrito como um homem
“devoto, mas não genuinamente religioso”, fabricador de “uma falsa personalidade”,
que lhe serviu “de disfarce para ocultar a verdadeira, que era incapaz de actos
democráticos”; portanto, um “impostor habilidoso”, que centralizou “nas suas
próprias mãos todos os instrumentos de poder arbitrário e irresponsável”; que
chegou ao poder reduzindo a população “a uma obediência de rebanho” e
perseguindo “toda a oposição”; criou, assim, um “Estado totalitário”, assente num
“único partido político”, numa polícia política “copiada da Gestapo”, na
“censura prévia aplicada a todas as manifestações de pensamento político ou
vida intelectual”, e noutros pilares conhecidos.
Segue-se a desconstrução veemente dos “reais feitos” de Salazar
que, na realidade, para HG, traduziam-se antes na “degradação do povo
português” (sujeito “à miséria moral dos povos párias dos países totalitários”),
na corrupção generalizada da sua administração (“No actual Portugal de Salazar,
tudo é comprado e vendido”), na transfiguração do exército numa “guarda
pretoriana servil” (logo, inútil para a defesa nacional), na existência de um governo
medíocre (responsável pela “miséria de mais de 80% da população portuguesa nos aspectos
vitais da sua existência como seres humanos”), numa educação plasmada num
“imbróglio mental e organizacional” e, por fim, numa justiça que não primava
pela independência, transformada no “negócio mais monstruoso” do país.
O retrato era arrasador, feito por um homem que tinha desempenhado
um papel importante no 28 de Maio, como militar, e no regime, como funcionário
colonial e deputado por Angola, mas que rompera com o Estado Novo no final dos anos
40 devido às suas críticas às condições da colonização angolana (Março de
1949).
Sem surpresa, a circulação do livro foi proibida. O editor ainda
amenizou “certas expressões mais incisivas do autor”, exercício que não influiu
na apreciação do censor:
“Na primeira parte deste livro faz-se um relato da história política
do regime. A segunda parte é o relato da operação. Em ambas se insulta
fortemente o governo, as instituições em geral, muitas pessoas, etc.”
E acrescentava, antes de concluir pela apreensão provisória do
livro:
“Entre outros, há aqui ofensas à magistratura, às forças armadas
e à administração em geral que é acusada de corrupção. Além disso, o livro, tal
como está escrito, parece constituir um forte incitamento à violência política”.
A sentença é bastante expressiva do que era a censura nesta altura,
muito preocupada com as críticas que mais pudessem afectar a segurança e o
prestígio do regime, ou as suas principais figuras políticas, de que os temas
abordados por HG eram caso sintomático. Daí a reacção repressiva, a priori, no
caso da imprensa escrita, e a posteriori, no caso dos livros, mas articulada com
outra vertente não raras vezes esquecida da acção da censura: a tentativa, que
vinha de trás, de formação de um bloco de opinião nacional favorável ao Estado
Novo, incompatível com a “Cruzada Pró Portugal” do nosso autor. Mas 6 meses
depois, com o 25 de Abril de 1974, o objectivo último da aventura do
rebaptizado Santa Liberdade era concretizado: “o desmoronamento do regime salazariano”.
[Álvaro Costa de Matos – in «A
primeira “libertação de uma parcela do território nacional”…», jornal PÚBLICO,
4 de Junho de 2014, p. 47
J.M.M.
Sem comentários:
Enviar um comentário