quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

“SE BEM ME LEMBRO …” OU PARA QUE NÃO NOS ESQUEÇAMOS



Se bem me lembro …” ou para que não nos esqueçamos – por Manuel Seixas, in Diário de Coimbra, 19 de Dezembro de 2018

Em 19 de Dezembro de 1901, nasceu Vitorino Nemésio na Praia da Vitória, ilha Terceira, Açores. Hoje, portanto, há 117 anos.

“... um grande poeta em quem Poesia e Vida se uniram servindo de espelho a uma grande alma" - palavras sábias e sentidas que ele próprio proferiu na homenagem ao seu amigo e companheiro "Tríptico"[1] Afonso Duarte. Palavras de Nemésio para o poeta da Eireira, palavras nossas agora para o poeta da Terceira.
A pessoa que "se desfazia em linguagem", "o poeta extraviado" e o mais universal de todos os açorianos, tudo escolheu em Coimbra - o curso, a companheira e a morada definitiva[2]. Aqui se licenciou mas, mais do que isso, aqui se formou.
Um homem de "saber sem pautas" que sobre tudo se interrogou e a todas as portas bateu. Da convivência agnóstica com Jaime Brasil, seu mentor literário inicial, passou pela faminta sobrevivência em Lisboa no meio anarco-sindicalista, seguindo-se a formação humanista com Joaquim de Carvalho. Os amigos que lhe acudiram ao corpo moldaram-lhe também a alma. Aurélio Quintanilha, António de Sousa, Martins de Carvalho, Afonso Duarte, Paulo Quintela e Mário de Castro - de todos foi amigo e cúmplice.
Da Associação Cristã de Estudantes ao Centro Republicano Académico, passou pelo Orfeão Académico e pela Loja A Revolta. Esteve em todos os combates contemporâneos, "poetava" e conferenciava, admirou o espírito de Merea e o brilho de Cerejeira, mas declarou guerra às sua ideias e bateu-se no senado universitário contra o protegido do reitor Fezas Vital.  
"Um homem exerce enquanto vive" afirmaria na sua última lição, naquela que considerou ser um exame de consciência da sua vida. Assim fez - ao viver, produziu uma obra ímpar - de ficção, de crónica, de ensaio, de tradução, de estudos literários e jornalismo, mas sobretudo poesia. Sempre e acima de tudo, poeta.
Rumou a Lisboa para a formatura, depois para o doutoramento, mas sempre voltou a Coimbra para repouso e trabalho. França, Bélgica, Brasil, para aprender e para ensinar mas sempre regressou a Coimbra, às Albergarias ou aos Casareus, a Celas ou ao Tovim. Entre crises místicas de profunda religiosidade e enamoramentos serôdios, a sua riquíssima formação e a curiosidade insaciável pela leitura permitiram-lhe tudo - a ironia e o experimentalismo, o simbólico e o formal, o lirismo e o plebeu. Mas também a insatisfação e a procura constantes. 
O grande público de então recordará sempre o seu contacto semanal televisivo, o comunicador em que a fala competia com as mãos e a admiração do espectador oscilava entre o conteúdo do discurso e a teatralidade do gesto.
A suas raízes de insularidade nunca esquecida e o mar, como elemento eterno, ficaram impressos na singeleza magnífica da sua campa quase rasa no cemitério de Coimbra que escolheu, para nunca termos que lhe dizer adeus, apenas cumprimentá-lo.
Se bem me lembro …” ou para que não nos esqueçamos – por Manuel Seixas, Diário de Coimbra, 19 de Dezembro de 2018 – com sublinhados nossos.


[1] Tríptico - jornal fundado em Coimbra por Nemésio e seus amigos Afonso Duarte, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca
[2] Vitorino Nemésio está sepultado por sua vontade expressa no cemitério de Santo Antônio dos Olivais, Coimbra

J.M.M.

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