Oração de Sapiência recitada na Sala dos Actos da Universidade
[de Coimbra], no dia 16 de Outubro de 1908, pelo dr. Sidónio Bernardino Cardoso
da Silva Pais, lente catedrático da Faculdade de Matemática
“ (…) O primeiro dever de quem fala é dizer o que pensa. Torcer
as suas ideias para as ajustar ás do auditório, procurando agradar, é servir um
fim utilitário, egoísta. Pode calar-se, mas se fala tem de dizer o que está de
harmonia com a sua consciência.
E tendo escolhido para assumpto a grave questão do ensino universitário,
eu acho que soou a hora de se dizer toda a verdade; impõe-se o dever cívico de
arrostar com as opiniões contrárias, mesmo correndo o risco de alienar as simpatias
dos que ouvem.
Mas eu creio, além disso, Senhores, que uma assembleia tão distinta,
para quem o amor da verdade é com certeza um culto, não me perdoaria se as
minhas palavras não fossem a expressão sincera e desinteressada do meu modo de
ver. A todos peço desculpa do tempo que lhes roubo. Que fazer, porém? Não podia
sem desprimor rejeitar a honra que a faculdade de matemática me deu e que deste
togar agradeço.
Do que a Universidade precisa neste momento não é de palavras, é
de obras. Envolve-nos, Senhores, uma atmosfera insalubre de desconfiança, de
descredito e de hostilidade. É certo que o sistema das instituições pedagógicas
não inspira confiança ao país. É certo mesmo que clamores gerais se têm
levantado contra os erros da organização escolar por que é responsável o
Estado, contra os defeitos do ensino dentro dessa organização imputados aos
professores e até contra o mau aproveitamento dos alunos debaixo dessa dupla
tutela do Estado e do professor, pelos vícios da educação recebida no lar e no
meio social, de que é culpada a família e a sociedade.
Mas os ataques dirigem-se de preferência e atingem a maior violência
contra a Universidade. O centro do alvo é aqui. Não se, ouve nem se lê uma
palavra a favor e o descrédito da Universidade, merecido ou injusto, tendo a propagar-se
por toda a parte. Este é o facto impressionante: a Universidade de Coimbra, a única
Universidade portuguesa, que devia ser o primeiro centro do instrução e de
educação do país, perde rapidamente o seu antigo prestigio o começa a ser
olhada como uma instituição anacrónica e perniciosa!
Que este juízo da opinião pública corresponda a uma fase real de
decadência da Universidade ou não, é o que importa mais. Mas de passagem deixai-me
notar que ele representa sempre um entrave, e difícil de vencer, para o êxito
do ensino. Não é que a Escola se despovoe. A Universidade não corre esse risco,
primeiro porque é a única para certas profissões e depois porque o aluno entre
nós busca, em geral, infelizmente, a facilidade do diploma e não a excelência do
ensino. Ora com este critério, e em igualdade das outras condições a Escola
mais desacreditada pode ser e será muitas vezes a mais frequentada (…)
Mas não é só fora do recinto universitário que se julga urgente
urna reforma da Universidade. Os estudantes ainda há pouco mais de um ano manifestaram
essa aspiração num movimento impetuoso de revolta, em que os poderes públicos
não viram senão uma questão de disciplina. E finalmente por parte dos
professores muitas vezes se tem formulado reclamações de largas reformas, anseios
de vida nova; e há anos que a Oração de Sapiência é a prova mais eloquente
d'esta situação dos espirites. Se alguém pensa ainda que a Universidade
satisfaz plenamente a sua alta missão educativa, esse alguém que reflita um
pouco no isolamento do seu modo de ver e que medite nas causas determinantes
desta corrente geral de opiniões.
Pela minha parte encontro, entre outros, três defeitos fundamentais
na organização desta Escola. O primeiro é peculiar a ela: é a subsistência das
velhas fórmulas da sua primitiva estrutura religiosa e clerical. O segundo, decerto
o mais grave de todos, é uma doença comum a toda a nossa instrução publica e
resume-se na — anulação da iniciativa do aluno. O terceiro em fim — a estreiteza
do circulo em que se projeta a luz da instrução, — é não só um mal da nossa organização
escolar e um problema para resolver ainda em muitos países civilizados, mas é
mesmo uma das faces da questão social (…)
Eu respeito, Senhores, todas as crenças sinceras, e avalio a
benéfica influencia que as religiões tiveram na educação moral das sociedades,
sem desconhecer a tendência das oligarquias para abusar delas como instrumentos
de dominação do povo.
Porém ciência e religião têm esferas separadas. Ambas têm um
corpo de doutrinas, mas os conhecimentos científicos emanam só da razão e as
verdades religiosas apoiam-se na revelação, que é uma palavra que não tem
sentido em ciência. Nestas condições a Escola, para ser livre, tem de ser neutral
em matéria religiosa. É a doutrina que se contém nestas belas e insuspeitas
palavras do grande Pasteur: ‘Quando entro no laboratório, deixo á porta todas
as minhas crenças; quando saio, retomo-as’.
Assim o parece ter compreendido o Estado português que não exerce influencia religiosa, nem a deixa exercer, na maior parte dos seus estabelecimentos de instrução. Subsistem apenas duas exceções inexplicáveis:
A primeira é na Escola primária, onde se ensina ainda a doutrina
cristã, mas este ensino não é obrigatório para os alunos cujos pais pertençam a
outras religiões. A segunda é na Universidade de Coimbra.
Refiro-me, Senhores, às obrigações de caracter religioso que são
impostas aos alunos e professores da Universidade e a esta mistura do serviço
de Deus e do serviço de Minerva, que me deixa perplexo sobre se foi a Escola
que se instalou na Igreja ou se foi a Igreja que invadiu a Escola. É ver no Anuário,
publicação oficial, o calendário eclesiástico e académico por que começa, onde
se detalham e distribuem ao mesmo tempo lições e missas, festas e feriados, a cor
dos paramentos e as insígnias dos professores, as horas das aulas e as horas
das rezas. Todas as festas académicas são conjugadas com solenidades
religiosas. Poderá haver alguma festa de capella que não tenha o carácter académico,
mas todas as funções académicas têm urna feição religiosa (…)”
in Anuário da Universidade de Coimbra, Ano Lectivo de 1908-1909,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1909, pp. XLIII-LIV
J.M.M.
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