“A Hostilidade aos Professores" – por José Pacheco Pereira, in Público, 18 de Maio de 2019
[Os professores têm muitas culpas, mas isso não esconde que têm
hoje uma das mais difíceis profissões que existem. E que, sem ela, caminhamos
para o mundo de Camilo]
A hostilidade aos professores é evidente em muitos sectores da
sociedade portuguesa. Manifestou-se mais uma vez no último conflito gerado
pelas votações dos partidos na Assembleia atribuindo aos professores a contagem
integral do tempo de serviço. Antes, durante e depois deste processo, a vaga de
hostilidade aos professores atingiu níveis elevados, com a comunicação social a
escavar fundo a ferida, com sondagens orientadas e uma miríade de artigos de
opinião e editoriais.
Valia a pena parar para pensar, porque este movimento de
hostilidade é mais anómalo do que se pensa, e acompanha outros, como o ataque
aos velhos como sendo um “fardo” dos novos. Mostram que estamos a entrar numa
cosmovisão social que implica um retrocesso enorme naquilo a que chamamos
precariamente “civilização”. É preciso recuar muito para encontrar ataques aos
professores, o último dos quais teve expressão quando a escola laica, em países
como a França, foi um alvo importante da Igreja, que tinha o monopólio do
ensino.
Mas eu seria muito cuidadoso sobre as razões dessa actual
hostilidade, porque ela incorpora aspectos muito negativos da evolução da nossa
sociedade. É um caminho que muita gente está a trilhar, sem perceber que ele
vai dar a um profundo retrocesso. E isso acontece muitas vezes na história: anda-se
para trás quase sem se dar por ela, contando com a inacção, a apatia, ou a
acédia de quem deveria reagir. Como a democracia é uma fina película contra a barbárie
e é apenas defendida pela vontade dos homens e não por nenhuma lei da natureza,
mais vale prevenir com todos os megafones possíveis.
Há vários aspectos na actual hostilidade. Há uma agravante no
caso português que tem a ver com a vitória muito significativa da ideologia
da troika, que está longe de ter desaparecido e, nalguns casos, migrou
para sectores que lhe deveriam ser alheios e não são: os socialistas, por
exemplo. Disfarçada de “economia”, essa ideologia assenta numa visão pseudocientífica,
muito rudimentar e simplista, cheia de variantes neomalthusianas, que se
apresentou como não tendo alternativa, a nefasta TINA. Isto encheu-nos as
cabeças e não saiu delas.
Essa ideologia centra-se na crítica do Estado, em particular do
Estado social, e transforma os funcionários públicos em cúmplices de uma rede
de privilégio, sendo descritos apenas como “despesa” excessiva. Vale a pena
ensinar-lhes um pouco de história europeia e lembrar-lhes o papel do Estado
desde Bismarck como instrumento para impedir sociedades bipolares de
“proletários” e ricos, com a consequente conflitualidade social extrema.
Acresce que esse processo criou à volta do Estado uma classe média, os tais
desdenhados funcionários públicos, que não só funcionou como tampão como
arrastou muita gente que vinha da pobreza e acedeu à mediania. A economia
privada e o dinamismo das empresas, quando existiu ou existe, teve e tem
igualmente esse papel, mas não chegou para criar este elevador social.Portanto, gritem contra a função pública e os malefícios do Estado - que também existem como é obvio -, mas percebam que o pacote de não ter professores, enfermeiros, médicos, jardineiros, funcionário das repartições, leva atrás de si o ensino e a saúde pública, que são componentes essenciais do elevador social, o único meio de retirar as pessoas da pobreza, quer no privado, quer no público. Pais lavradores, que conheceram a verdadeira pobreza, filha professora primária ou funcionária pública, neto estudante universitário – sendo que o papel da educação é um elemento fundamental para esta ascensão.
Depois, há outros ingredientes. Os professores protestam, fazem greves, boicotam exames, fecham escolas, e hoje há uma forte penalização para as lutas sociais. Quem defende os seus interesses é penalizado e de imediato tem contra si muita comunicação social, o bas-fond das redes sociais e a maioria da opinião pública. São os enfermeiros, os camionistas, os professores, os trabalhadores dos transportes – manifestam-se, são logo classificados de privilegiados e egoístas. Os mansos que recebem migalhas no fundo do seu ressentimento invejam quem se mexe. Sem mediações, a sociedade esconde os que não precisam, e pune os que lutam. As greves hoje são solitárias.
O papel mais negativo é o da comunicação social, que se coloca
sempre na primeira linha do combate ao protesto social. Despreza por regra os
sindicatos, que considera anacrónicos, aceita condições de trabalho
de sweatshop e ajuda a apagar e a tornar incómoda a memória de que o
pouco que muitos têm no mundo do trabalho foi conseguido com muito sangue, e
não ficando em casa a jogar gomas no telemóvel ou a coscuvilhar no Facebook.
Por fim, e o mais importante, há uma desvalorização do papel do
professor, de ensinar, de transmitir um saber. Vem num pacote sinistro que
inclui o falso igualitarismo nas redes sociais, o ataque à hierarquia do saber,
o desprezo pelo conhecimento profissional resultado de muito trabalho a favor
de frases avulsas, com erros e asneiras, sem sequer se conhecer aquilo de que
se fala. É o que leva Trump a dizer que se combatia o incêndio de Notre-Dame
com aviões-tanques atirando toneladas de água, cujo resultado seria derrubar o
que veio a escapar, paredes, vitrais, obras de arte. É destas “bocas” que
pululam nas redes sociais que nasce também a hostilidade aos professores. É o
ascenso da nova ignorância arrogante, um sinal muito preocupante para o nosso
futuro.
Os professores têm muitas culpas, deveriam aceitar uma mais
rigorosa avaliação profissional, deveriam evitar ser tão parecidos como estes
novos ignorantes, deveriam ler e estudar mais, deveriam ser severos com as
modas do deslumbramento tecnológico, mas isso não esconde que têm hoje uma das
mais difíceis profissões que existe. E que, sem ela, caminhamos para o mundo de
Camilo. Não de Eça, mas de Camilo, do Portugal de Camilo. Verdade seja que isto
já não significa nada para a maioria das pessoas. Batam nos professores e
depois queixem-se …"
A Hostilidade aos Professores –
por José Pacheco Pereira, Público,
18 de Maio de 2019, p.8 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
1 comentário:
Excelente artigo! Incisivo e esclarecedor. Em relação ao último parágrafo, considero há muito que a avaliação não deveria ser nos moldes atuais, em que se privilegia a ação e o "dossiê" individual de cada professor. De nada serve ter professores de excelência, quando, na verdade, a escola como um todo, nada ou pouco aprende com as práticas dessa excelência dentro da sala de aula. Ainda há pouca partilha do saber fazer. Contudo, atendendo à média de idades dos professores, julgo que poucas diferenças haverá entre todos; a experiência de vida e de profissão dão cartas, e de grande qualidade, quanto a mim. Lembrar também que todos os dias, os professores estão a ser avaliados ao minuto pelos seus alunos e encarregados de educação; nem sempre da forma mais justa e equilibrada. Tal como acontece quando um professor tem Muito Bom na avaliação, depois de observação das suas aulas e de analisado toda a qualidade do seu empenho, e a Comissão de Avaliadores desce-lhe a nota para Bom, por não haver quota que chegue na escola. Azar, se estiver no 4º e 6º escalões isso pode custar-lhe ir parar a uma lista de vagas sem saber quanto tempo lá permanece até " descongelar". Na verdade, a lista aumenta todos os anos e há professores, que por muito bom que seja o seu desempenho e que o mesmo seja reconhecido pelos seus superiores e pares, ainda não descongelaram, havendo professores parados na carreira desde 2004! Esta é uma das faces da atual situação. A sensação de injustiça é imensa.Porém, todos os dias, os professores levantam a cabeça e cara alegre! Como se nada se passasse. Até porque os seus problemas não podem afetar o rendimento dos seus alunos! Tenho para mim, que esta abnegação é mesmo de excelência.
professora, 53 anos, 30 de serviço, a aguardar vaga para o 5º escalão. Vencimento "depois dos descontos": 1300.00.
Enviar um comentário