segunda-feira, 20 de maio de 2019

A HOSTILIDADE AOS PROFESSORES – POR JOSÉ PACHECO PEREIRA


A Hostilidade aos Professores" – por José Pacheco Pereira, in Público, 18 de Maio de 2019

[Os professores têm muitas culpas, mas isso não esconde que têm hoje uma das mais difíceis profissões que existem. E que, sem ela, caminhamos para o mundo de Camilo]  
A hostilidade aos professores é evidente em muitos sectores da sociedade portuguesa. Manifestou-se mais uma vez no último conflito gerado pelas votações dos partidos na Assembleia atribuindo aos professores a contagem integral do tempo de serviço. Antes, durante e depois deste processo, a vaga de hostilidade aos professores atingiu níveis elevados, com a comunicação social a escavar fundo a ferida, com sondagens orientadas e uma miríade de artigos de opinião e editoriais.

Valia a pena parar para pensar, porque este movimento de hostilidade é mais anómalo do que se pensa, e acompanha outros, como o ataque aos velhos como sendo um “fardo” dos novos. Mostram que estamos a entrar numa cosmovisão social que implica um retrocesso enorme naquilo a que chamamos precariamente “civilização”. É preciso recuar muito para encontrar ataques aos professores, o último dos quais teve expressão quando a escola laica, em países como a França, foi um alvo importante da Igreja, que tinha o monopólio do ensino.
Mas eu seria muito cuidadoso sobre as razões dessa actual hostilidade, porque ela incorpora aspectos muito negativos da evolução da nossa sociedade. É um caminho que muita gente está a trilhar, sem perceber que ele vai dar a um profundo retrocesso. E isso acontece muitas vezes na história: anda-se para trás quase sem se dar por ela, contando com a inacção, a apatia, ou a acédia de quem deveria reagir. Como a democracia é uma fina película contra a barbárie e é apenas defendida pela vontade dos homens e não por nenhuma lei da natureza, mais vale prevenir com todos os megafones possíveis.

Há vários aspectos na actual hostilidade. Há uma agravante no caso português que tem a ver com a vitória muito significativa da ideologia da troika, que está longe de ter desaparecido e, nalguns casos, migrou para sectores que lhe deveriam ser alheios e não são: os socialistas, por exemplo. Disfarçada de “economia”, essa ideologia assenta numa visão pseudocientífica, muito rudimentar e simplista, cheia de variantes neomalthusianas, que se apresentou como não tendo alternativa, a nefasta TINA. Isto encheu-nos as cabeças e não saiu delas.
Essa ideologia centra-se na crítica do Estado, em particular do Estado social, e transforma os funcionários públicos em cúmplices de uma rede de privilégio, sendo descritos apenas como “despesa” excessiva. Vale a pena ensinar-lhes um pouco de história europeia e lembrar-lhes o papel do Estado desde Bismarck como instrumento para impedir sociedades bipolares de “proletários” e ricos, com a consequente conflitualidade social extrema. Acresce que esse processo criou à volta do Estado uma classe média, os tais desdenhados funcionários públicos, que não só funcionou como tampão como arrastou muita gente que vinha da pobreza e acedeu à mediania. A economia privada e o dinamismo das empresas, quando existiu ou existe, teve e tem igualmente esse papel, mas não chegou para criar este elevador social.


Portanto, gritem contra a função pública e os malefícios do Estado - que também existem como é obvio -, mas percebam que o pacote de não ter professores, enfermeiros, médicos, jardineiros, funcionário das repartições, leva atrás de si o ensino e a saúde pública, que são componentes essenciais do elevador social, o único meio de retirar as pessoas da pobreza, quer no privado, quer no público. Pais lavradores, que conheceram a verdadeira pobreza, filha professora primária ou funcionária pública, neto estudante universitário – sendo que o papel da educação é um elemento fundamental para esta ascensão.
Depois, há outros ingredientes. Os professores protestam, fazem greves, boicotam exames, fecham escolas, e hoje há uma forte penalização para as lutas sociais. Quem defende os seus interesses é penalizado e de imediato tem contra si muita comunicação social, o bas-fond das redes sociais e a maioria da opinião pública. São os enfermeiros, os camionistas, os professores, os trabalhadores dos transportes – manifestam-se, são logo classificados de privilegiados e egoístas. Os mansos que recebem migalhas no fundo do seu ressentimento invejam quem se mexe. Sem mediações, a sociedade esconde os que não precisam, e pune os que lutam. As greves hoje são solitárias.

O papel mais negativo é o da comunicação social, que se coloca sempre na primeira linha do combate ao protesto social. Despreza por regra os sindicatos, que considera anacrónicos, aceita condições de trabalho de sweatshop e ajuda a apagar e a tornar incómoda a memória de que o pouco que muitos têm no mundo do trabalho foi conseguido com muito sangue, e não ficando em casa a jogar gomas no telemóvel ou a coscuvilhar no Facebook.
Por fim, e o mais importante, há uma desvalorização do papel do professor, de ensinar, de transmitir um saber. Vem num pacote sinistro que inclui o falso igualitarismo nas redes sociais, o ataque à hierarquia do saber, o desprezo pelo conhecimento profissional resultado de muito trabalho a favor de frases avulsas, com erros e asneiras, sem sequer se conhecer aquilo de que se fala. É o que leva Trump a dizer que se combatia o incêndio de Notre-Dame com aviões-tanques atirando toneladas de água, cujo resultado seria derrubar o que veio a escapar, paredes, vitrais, obras de arte. É destas “bocas” que pululam nas redes sociais que nasce também a hostilidade aos professores. É o ascenso da nova ignorância arrogante, um sinal muito preocupante para o nosso futuro.

Os professores têm muitas culpas, deveriam aceitar uma mais rigorosa avaliação profissional, deveriam evitar ser tão parecidos como estes novos ignorantes, deveriam ler e estudar mais, deveriam ser severos com as modas do deslumbramento tecnológico, mas isso não esconde que têm hoje uma das mais difíceis profissões que existe. E que, sem ela, caminhamos para o mundo de Camilo. Não de Eça, mas de Camilo, do Portugal de Camilo. Verdade seja que isto já não significa nada para a maioria das pessoas. Batam nos professores e depois queixem-se …"

A Hostilidade aos Professores – por José Pacheco Pereira, Público, 18 de Maio de 2019, p.8  – com sublinhados nossos.

J.M.M.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente artigo! Incisivo e esclarecedor. Em relação ao último parágrafo, considero há muito que a avaliação não deveria ser nos moldes atuais, em que se privilegia a ação e o "dossiê" individual de cada professor. De nada serve ter professores de excelência, quando, na verdade, a escola como um todo, nada ou pouco aprende com as práticas dessa excelência dentro da sala de aula. Ainda há pouca partilha do saber fazer. Contudo, atendendo à média de idades dos professores, julgo que poucas diferenças haverá entre todos; a experiência de vida e de profissão dão cartas, e de grande qualidade, quanto a mim. Lembrar também que todos os dias, os professores estão a ser avaliados ao minuto pelos seus alunos e encarregados de educação; nem sempre da forma mais justa e equilibrada. Tal como acontece quando um professor tem Muito Bom na avaliação, depois de observação das suas aulas e de analisado toda a qualidade do seu empenho, e a Comissão de Avaliadores desce-lhe a nota para Bom, por não haver quota que chegue na escola. Azar, se estiver no 4º e 6º escalões isso pode custar-lhe ir parar a uma lista de vagas sem saber quanto tempo lá permanece até " descongelar". Na verdade, a lista aumenta todos os anos e há professores, que por muito bom que seja o seu desempenho e que o mesmo seja reconhecido pelos seus superiores e pares, ainda não descongelaram, havendo professores parados na carreira desde 2004! Esta é uma das faces da atual situação. A sensação de injustiça é imensa.Porém, todos os dias, os professores levantam a cabeça e cara alegre! Como se nada se passasse. Até porque os seus problemas não podem afetar o rendimento dos seus alunos! Tenho para mim, que esta abnegação é mesmo de excelência.
professora, 53 anos, 30 de serviço, a aguardar vaga para o 5º escalão. Vencimento "depois dos descontos": 1300.00.