quarta-feira, 8 de março de 2023

A LIÇÃO DE ANTERO – POR ANTÓNIO VALDEMAR

A lição de Antero – por António Valdemar

Uma das mais lúcidas inteligências da sua geração, Antero de Quental combateu com a maior coragem os desgastes da rotina, a sordidez do oportunismo, a ausência da honra e da falta de carater, para transpor a crise moral e proceder aos desafios da mudança para construir o futuro.

A intervenção de Antero de Quental na literatura e na política inserem–se num projeto de mudança que se manifestou na segunda metade do seculo XIX, percorreu todo o seculo XX e, ainda, continua a exigir reflexão, mesmo depois de restituídas as liberdades constitucionais e formalizada a integração de Portugal na Europa. Marcou, em ambas as circunstâncias, o início da modernidade. A poesia portuguesa vai ser outra. E também as outras modalidades de literatura para operar a transformação da mentalidade.

Na primeira edição das Odes Modernas (1865) destacam se as interpelações enérgicas de Antero ao magistério de Castilho. Constituíram o rastilho da profunda agitação que se estendeu através de todo o país, durante mais de um ano, em jornais, em revistas e em panfletos oriundos dos dois setores intransigentes; os adeptos da tradição personificada em Castilho; e a nova geração empenhada na revolução política e social. Tudo isto elegeu Antero como a mais emblemática figura intelectual da Geração de 70.

Desmascarou o pontificado de Castilho, a desfaçatez do elogio mútuo e a subserviência dos seus epígonos que tiveram em Pinheiro Chagas, o mais famoso paradigma. O perfil deste e outros personagens será objeto das implacáveis caricaturas de Eça de Queiroz: o conselheiro Acácio no Primo Basílio; o todo poderoso Pacheco na Correspondência de Fradique Mendes, ministro, conselheiro, um «imenso talento» elogiado por todos e que só a viúva, não acreditava, quando, após a morte, recebia as condolências nacionais...

As poesias completas de Antero já têm, finalmente, uma edição crítica organizada por Luis Fagundes Duarte editada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e integrada nas Obras Clássicas da Literatura Portuguesa. É agora possível reformular os estudos anterianos e confirmar o impacto de Antero na sua geração e nas gerações seguintes. Três exemplos: Cesário Verde, Camilo Pessanha, vários poetas do Orpheu. Manuscritos depositados na Biblioteca Nacional revelam, que o próprio Fernando Pessoa deixou traduções para inglês de muitos sonetos e preparou uma edição das poesias de Antero, constituída por seis pequenos volumes, conforme as publicações de Coleridge, por W & Foyle. Podemos admitir que Fernando Pessoa não seria o que é se não tivesse havido, a aproximação e a forte influência da obra de Antero. Podemos recordar que os Sonetos de Antero – através da tradução alemã de Wilhelm Storck - chegaram ao conhecimento de Tolstoi que registou no seu diário a profunda emoção que lhe causaram. Antero – antes do impacto da obra ortónima e heterónima de Pessoa - foi um dos poetas portugueses de maior reconhecimento universal.

Isto no que se refere á literatura. A outra grande polemica que Antero liderou As Conferencias Democráticas do Casino - desde que surgiram em 1871 – introduziram a modernidade. Tiveram origem no Cenáculo, a casa de Jaime Batalha Reis, primeiro, no Bairro Alto, na Travessa do Guarda-mor, hoje Rua do Grémio Lusitano, próximo da sede da Maçonaria; depois, transferida para outro prédio, defronte do Jardim de São Pedro de Alcântara. Reunia um grupo de amigos com objetivos comuns, na área política e no domínio social. Entre outros Antero, Eça, Ramalho, Salomão Sáraga, Lobo de Moura e Manuel de Arriaga. Embora residindo fora de Lisboa associaram-se: Oliveira Martins, Teófilo Braga e Guilherme de Azevedo. O lacónico anúncio a 29 de Abril das Conferências Democráticas do Casino aguçou a curiosidade. Mas a 19 de Maio, acentuaram – se receios ao ser divulgado o programa e o nome dos oradores. As Conferencias realizavam-se, no Casino de Lisboa, um espaço público de diversões para a população da cidade, no Largo da Abegoaria, atual Largo Rafael Bordalo Pinheiro.


Na primeira conferência, a 22 de Maio, Antero alertou para a urgência de «ligar Portugal com o movimento moderno (…), para os elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; estudar as condições de transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa; investigar como a sociedade é, e como ela deve ser; como as nações têm sido, e como as pode fazer hoje a liberdade; e por serem elas formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século». Portugal não podia «viver e desenvolver-se» – insistia Antero - «isolado das grandes preocupações do seu tempo».

A segunda intervenção, As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, também, proferida por Antero lançou a polémica. Depois de ocupar «a vanguarda da civilização, na época áurea dos Descobrimentos», - afirmou - «resvalámos para o obscurantismo com a Inquisição; perdemos o espírito de independência e originalidade do génio inventivo». [...] Estivemos nos últimos três séculos: «sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados!»

Especificou os três motivos da decadência: «um moral, outro político, outro económico, compreendendo os três grandes aspetos da vida social — o pensamento, a política e o trabalho: «o primeiro, a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento; o segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais; o terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas, contrapondo-se todos os três aos factos capitais que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas e tomavam a dianteira da civilização».

Ao ponderar as razões do isolamento e do atraso Antero observava: «As raízes do passado rebentam sob forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história. Que é, pois, necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado».

O tema A Literatura Portuguesa abordado por Augusto Soromenho ampliou a controvérsia ao querer demonstrar que, em todas as épocas, «Portugal não produziu uma literatura própria, criadora, original». Ignorou Garret e Herculano e rematou: “De literatura não há dez reis em cofre». Também acerca de literatura, a conferência de Eça de Queiroz, circunscreveu-se ao Realismo como nova expressão de Arte. As tendências literárias e estéticas – salientou – não constituem fatos isolados, nem se resumem às «grandes individualidades». Refletem o progresso e a decadência das sociedades. A crítica às condições em que se processava o magistério, preencheu a conferência de Adolfo Coelho sobre A Questão do Ensino. Foi uma dissecação implacável dos aspetos pontuais e estruturais do que se passava nas escolas primárias, secundárias e universitárias para denunciar a extensão da crise que reclamava necessidade de uma reforma profunda.

Todavia, o escândalo atingiu o rubro ao ser conhecida a conferência, de Salomão Sáraga Os Historiadores críticos de Jesus. Bastou o título e o nome do orador para o governo intervir. Salomão Sáraga um judeu, apoiado nas investigações de Renan, propunha- se examinar a figura histórica de Jesus retirando – lhe os atributos sobrenaturais: Jesus, afinal, não era Deus. Uma portaria subscrita pelo primeiro-ministro, o Duque de Avila determinou o encerramento imediato: as conferências expunham «doutrinas e proposições que atacavam a Religião e as instituições políticas do Estado”.

A ordem do governo era terminante. As conferências foram proibidas no local onde se efetuavam ou em qualquer outro sítio. Estava em causa a religião católica que contribuía para garantir a estabilidade pública. Antero do Quental redigiu o protesto. Merece sempre ser lembrado: «Em nome da liberdade do pensamento, da liberdade da palavra, da liberdade de reunião, bases de todo o direito público, únicas garantias da justiça social, protestamos ainda mais contristados que indignados, contra a portaria que manda arbitrariamente fechar a sala das Conferencias Democráticas. Apelamos para a opinião pública, para a consciência liberal do país, reservando a plena liberdade de respondermos a este acto de brutal violência como nos mandar a nossa consciência de homens e cidadãos».

Podemos concluir – e numa retrospetiva bastante sumária – que as Conferências Democráticas do Casino a estatura cultural e cívica dos oradores, os debates que suscitaram colocam – nos perante duas visões de Portugal que se têm repetido: a de um País mergulhado na continuidade e nas transigências; e a de um outro Pais decidido a apostar na rutura.

Apesar do que ocorreu na reta final de Antero, pouco antes do seu encontro com a morte - dois tiros de revolver, no céu-da-boca, numa praça pública de Ponta Delgada, manteve-se atento perante a situação do País: a afronta do Ultimatum inglês; a derrota da revolução republicana do 31 de Janeiro; o falhanço da Junta Patriótica do Norte, - a que presidia - para encontrar soluções e mobilizar vontades, perante a crise.

A classe política - tal como hoje – refugiava-se em vagos compromissos. Os intelectuais, em desacordos e conflitos permanentes, não concretizavam um projeto concreto e viável para transformar o presente e construir o futuro. Portugal mergulhara num conflito de interesses, numa teia de ódios e num emaranhado de ambições. Antero deplorava tudo o que via e tudo o que ouvia. A crise era, sobretudo, moral. Comentava, numa carta, a um amigo íntimo, que assistíamos «ao estado de prostração do espírito público. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos candidatos do Governo. Governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião, estava lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas».

Os jogos políticos e as retóricas parlamentares eram suficientes. Em vez de questionar as estruturas orgânicas do regime, definir outras diretrizes, proceder a uma reforma do Estado e da Administração Pública é preciso sossego. Há tudo ao pé da porta. Basta de trapalhadas e de pandemónios. Já estamos na História. Ficará, e como sempre, para outros a abertura de Portugal ao mundo. Para formar o jovem e o cidadão. Para todos nós conseguirmos pensar e intervir de forma ativa e responsável.

A lição de Antero – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências], publicado na revista Grémio Lusitano, n. 24 – com sublinhados nossos.

J.M.M. 

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