A lição de Antero –
por António Valdemar
Uma das mais lúcidas inteligências da
sua geração, Antero de Quental combateu com a maior coragem os desgastes da
rotina, a sordidez do oportunismo, a ausência da honra e da falta de carater,
para transpor a crise moral e proceder aos desafios da mudança para construir o
futuro.
A intervenção de Antero
de Quental na literatura e na política inserem–se num projeto de mudança
que se manifestou na segunda metade do seculo XIX, percorreu todo o seculo XX
e, ainda, continua a exigir reflexão, mesmo depois de restituídas as liberdades
constitucionais e formalizada a integração de Portugal na Europa. Marcou, em
ambas as circunstâncias, o início da modernidade. A poesia portuguesa vai ser
outra. E também as outras modalidades de literatura para operar a transformação
da mentalidade.
Na primeira edição das Odes Modernas (1865) destacam se as
interpelações enérgicas de Antero ao
magistério de Castilho. Constituíram
o rastilho da profunda agitação que se estendeu através de todo o país, durante
mais de um ano, em jornais, em revistas e em panfletos oriundos dos dois
setores intransigentes; os adeptos da tradição personificada em Castilho; e a nova geração empenhada na
revolução política e social. Tudo isto elegeu Antero como a mais emblemática figura intelectual da Geração
de 70.
Desmascarou o pontificado de Castilho, a desfaçatez do elogio mútuo e a subserviência dos seus
epígonos que tiveram em Pinheiro Chagas,
o mais famoso paradigma. O perfil deste e outros personagens será objeto das
implacáveis caricaturas de Eça de
Queiroz: o conselheiro Acácio no
Primo
Basílio; o todo poderoso Pacheco
na Correspondência
de Fradique Mendes, ministro, conselheiro, um «imenso talento» elogiado
por todos e que só a viúva, não acreditava, quando, após a morte, recebia as
condolências nacionais...
As poesias completas de Antero
já têm, finalmente, uma edição crítica organizada por Luis Fagundes Duarte editada pelo Instituto Português do Livro e das
Bibliotecas e integrada nas Obras Clássicas da Literatura Portuguesa.
É agora possível reformular os estudos anterianos e confirmar o impacto de Antero na sua geração e nas gerações
seguintes. Três exemplos: Cesário Verde,
Camilo Pessanha, vários poetas do Orpheu.
Manuscritos depositados na Biblioteca Nacional revelam, que o
próprio Fernando Pessoa deixou
traduções para inglês de muitos sonetos e preparou uma edição das poesias de Antero, constituída por seis pequenos
volumes, conforme as publicações de Coleridge,
por W
& Foyle. Podemos admitir que Fernando
Pessoa não seria o que é se não tivesse havido, a aproximação e a forte
influência da obra de Antero.
Podemos recordar que os Sonetos de Antero – através da tradução alemã de
Wilhelm Storck - chegaram ao conhecimento de Tolstoi que registou no seu diário
a profunda emoção que lhe causaram. Antero – antes do impacto da obra ortónima
e heterónima de Pessoa - foi um dos poetas portugueses de maior reconhecimento
universal.
Isto no que se refere á literatura. A outra grande polemica que
Antero liderou As Conferencias Democráticas do Casino - desde que surgiram em
1871 – introduziram a modernidade. Tiveram origem no Cenáculo, a casa de Jaime Batalha Reis, primeiro, no Bairro
Alto, na Travessa do Guarda-mor, hoje Rua do Grémio Lusitano,
próximo da sede da Maçonaria; depois, transferida para outro prédio, defronte
do Jardim
de São Pedro de Alcântara. Reunia um grupo de amigos com objetivos
comuns, na área política e no domínio social. Entre outros Antero, Eça, Ramalho, Salomão Sáraga, Lobo de Moura e Manuel de Arriaga. Embora residindo fora de Lisboa associaram-se: Oliveira Martins, Teófilo Braga e Guilherme de
Azevedo. O lacónico anúncio a 29 de Abril das Conferências Democráticas do
Casino aguçou a curiosidade. Mas a 19 de Maio, acentuaram – se receios
ao ser divulgado o programa e o nome dos oradores. As Conferencias realizavam-se,
no Casino
de Lisboa, um espaço público de diversões para a população da cidade,
no Largo
da Abegoaria, atual Largo Rafael Bordalo Pinheiro.
Na primeira conferência, a 22 de Maio, Antero alertou para a urgência de «ligar Portugal com o movimento
moderno (…), para os elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
estudar as condições de transformação política, económica e religiosa da
sociedade portuguesa; investigar como a sociedade é, e como ela deve ser; como
as nações têm sido, e como as pode fazer hoje a liberdade; e por serem elas
formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século».
Portugal não podia «viver e desenvolver-se» – insistia Antero - «isolado das grandes preocupações do seu tempo».
A segunda intervenção, As Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares, também, proferida por Antero lançou a polémica. Depois de ocupar «a vanguarda da
civilização, na época áurea dos Descobrimentos», - afirmou - «resvalámos para o
obscurantismo com a Inquisição; perdemos o espírito de independência e
originalidade do génio inventivo». [...] Estivemos nos últimos três séculos: «sem vida, sem liberdade,
sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo,
espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram
sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os
passos e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões
lúgubres e mortais chegamos ressuscitados!»
Especificou os três motivos da decadência: «um moral, outro
político, outro económico, compreendendo os três grandes aspetos da vida social
— o pensamento, a política e o trabalho: «o primeiro, a transformação do
Catolicismo pelo Concílio de Trento; o segundo, o estabelecimento do
Absolutismo, pela ruína das liberdades locais; o terceiro, o desenvolvimento
das Conquistas longínquas, contrapondo-se todos os três aos factos capitais que
se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam
inteligentes, ricas, poderosas e tomavam a dianteira da civilização».
Ao ponderar as razões do isolamento e do atraso Antero observava: «As raízes do passado
rebentam sob forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso
dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história. Que é, pois,
necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? para entrarmos
outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um
esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado».
O tema A Literatura Portuguesa abordado por
Augusto Soromenho ampliou a
controvérsia ao querer demonstrar que, em todas as épocas, «Portugal não
produziu uma literatura própria, criadora, original». Ignorou Garret e Herculano e rematou: “De literatura não há dez reis em cofre». Também
acerca de literatura, a conferência de Eça
de Queiroz, circunscreveu-se ao Realismo como nova expressão de Arte. As
tendências literárias e estéticas – salientou – não constituem fatos isolados,
nem se resumem às «grandes individualidades». Refletem o progresso e a
decadência das sociedades. A crítica às condições em que se processava o
magistério, preencheu a conferência de Adolfo
Coelho sobre A Questão do Ensino. Foi uma dissecação implacável dos aspetos
pontuais e estruturais do que se passava nas escolas primárias, secundárias e
universitárias para denunciar a extensão da crise que reclamava necessidade de
uma reforma profunda.
Todavia, o escândalo atingiu o rubro ao ser conhecida a conferência,
de Salomão Sáraga Os
Historiadores críticos de Jesus. Bastou o título e o nome do orador
para o governo intervir. Salomão Sáraga
um judeu, apoiado nas investigações de Renan, propunha- se examinar a figura
histórica de Jesus retirando – lhe
os atributos sobrenaturais: Jesus,
afinal, não era Deus. Uma portaria subscrita pelo primeiro-ministro, o Duque de Avila determinou o
encerramento imediato: as conferências expunham «doutrinas e proposições que
atacavam a Religião e as instituições políticas do Estado”.
A ordem do governo era terminante. As conferências foram
proibidas no local onde se efetuavam ou em qualquer outro sítio. Estava em
causa a religião católica que contribuía para garantir a estabilidade pública. Antero do Quental redigiu o protesto.
Merece sempre ser lembrado: «Em nome da liberdade do pensamento, da
liberdade da palavra, da liberdade de reunião, bases de todo o direito público,
únicas garantias da justiça social, protestamos ainda mais contristados que
indignados, contra a portaria que manda arbitrariamente fechar a sala das
Conferencias Democráticas. Apelamos para a opinião pública, para a consciência
liberal do país, reservando a plena liberdade de respondermos a este acto de
brutal violência como nos mandar a nossa consciência de homens e cidadãos».
Podemos concluir – e numa retrospetiva bastante sumária – que as
Conferências Democráticas do Casino a estatura cultural e cívica dos oradores,
os debates que suscitaram colocam – nos perante duas visões de Portugal que se
têm repetido: a de um País mergulhado na continuidade e nas transigências; e a
de um outro Pais decidido a apostar na rutura.
Apesar do que ocorreu na reta final de Antero, pouco antes do seu encontro com a morte - dois tiros de
revolver, no céu-da-boca, numa praça pública de Ponta Delgada, manteve-se atento perante a situação do País: a
afronta do Ultimatum inglês; a derrota da revolução republicana do 31 de
Janeiro; o falhanço da Junta Patriótica do Norte, - a que
presidia - para encontrar soluções e mobilizar vontades, perante a crise.
A classe política - tal como hoje – refugiava-se em vagos
compromissos. Os intelectuais, em desacordos e conflitos permanentes, não
concretizavam um projeto concreto e viável para transformar o presente e
construir o futuro. Portugal mergulhara num conflito de interesses, numa teia de
ódios e num emaranhado de ambições. Antero
deplorava tudo o que via e tudo o que ouvia. A crise era, sobretudo, moral.
Comentava, numa carta, a um amigo íntimo, que assistíamos «ao estado de
prostração do espírito público. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as
eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos
candidatos do Governo. Governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião,
estava lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas».
Os jogos políticos e as retóricas parlamentares eram
suficientes. Em vez de questionar as estruturas orgânicas do regime, definir
outras diretrizes, proceder a uma reforma do Estado e da Administração Pública
é preciso sossego. Há tudo ao pé da porta. Basta de trapalhadas e de
pandemónios. Já estamos na História. Ficará, e como sempre, para outros a
abertura de Portugal ao mundo. Para formar o jovem e o cidadão. Para todos
nós conseguirmos pensar e intervir de forma ativa e responsável.
A lição de Antero – por António
Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das
Ciências], publicado na
revista Grémio Lusitano, n. 24 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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