“Os 120 anos
do nascimento de Almada Negreiros, que agora se completam, têm constituído
pretexto para uma série de manifestações e homenagens que abrangem o artista
plástico, o poeta, o romancista, o novelista, o dramaturgo, o panfletário e,
simultaneamente, o grupo e a geração de Orpheu, a diversidade de percursos e
atitudes que, no seu todo, configuram um momento histórico na procura e
afirmação da modernidade.
Desde sempre
o Chiado e os seus locais mais emblemáticos permanecem associados às múltiplas
intervenções de Almada Negreiros. Foi tão íntima e tão longa essa relação
física e cultural que do Chiado se poderia dizer que era a sua própria casa,
numa Lisboa mergulhada nas guerrilhas da República e numa sociedade imobilizada
no seculo XIX e, ao mesmo tempo, com a ambição ilimitada de atingir o mundo
para um diálogo com as vanguardas europeias.
Partilhou o
Chiado com Sónia e Robert Delaunay, quando se refugiaram em Portugal, a fugir a
guerra de 14; com Diaguilew e outras figuras dos Bailados Russos que ao
chegarem a Lisboa são apanhados de surpresa com a revolução de Sidónio Pais;
também num hotel do Chiado, em 1947, falou com Miró, ao passar por Lisboa a
caminho de Nova Iorque. O encontro a que também assistiu António Dacosta ficou
registado numa fotografia e no Sempre Fixe, na Fita da Semana, de
Carlos Botelho.
O
aparecimento de Almada, como desenhador e caricaturista, decorreu em 1912, no
1.º Salão dos Humoristas, uma exposição coletiva no Grémio Literário inaugurada
pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga. Em 14 de Abril de 1917
apresentou no São Luís (antigo Teatro República) O Ultimatum Futurista às
Gerações Portuguesas do Século XX – uma explosão de intenções e chicotadas
para romper a indiferença e sacudir a rotina. Uma entrega total de energia para
mudar o País.
Interveio,
no Chiado Terrasse, a 18 de Dezembro de 1921, no Comício dos Novos com Gualdino
Gomes a presidir, Aquilino Ribeiro na mesa e, entre a assistência perplexa. Foi
outra proclamação futurista contra os modelos dominantes. Expôs na Bobone, uma
das raras galerias de Lisboa, com tradições oitocentistas; e depois de
regressar de Espanha, nos anos 30, fez uma exposição na UP, uma galeria na rua
Serpa Pinto, dirigida por António Pedro, onde Vieira da Silva apresentou os
primeiros trabalhos.
A editorial
Ática, fundada por Luis de Montalvor, um dos participantes do Orpheu – e
autor do título da revista – teve a primeira sede na esquina da rua do Carmo,
com a rua Garrett. Ao lançar, a partir de 1942, a obra ortónima e heterónima de
Fernando Pessoa, Montalvor colocou na capa de cada volume um desenho de Almada,
um Pégaso, símbolo mitológico e vivo da poesia em movimento.
A amizade
com Fernando Amado incorporou-o na história do Centro Nacional de Cultura ao
debater, em 1946, a “posição do artista na sociedade”. Foi um dos escolhidos
para decorar a Brasileira do Chiado que, juntamente com o Bristol Club,
introduziu em espaços públicos a consagração da arte moderna.
A
Brasileira, quase até ao fim, constituiu um dos lugares de convívio diário.
Almada, ali se envolveu numa aguerrida cena de pugilato com José de Bragança, a
propósito da prioridade da descoberta das perspectivas dos ladrilhos que reuniu
num políptico os dois trípticos dos Painéis de São Vicente de Fora.
E quando não
é no Chiado, é nas suas fronteiras que o deparamos, nos seus primórdios ou nos
momentos mais exuberantes da sua carreira. Realizou, a primeira exposição
individual, em 1913, na Escola Internacional, na rua da Emenda, a dois passos
do largo do Calhariz. A Ilustração Portuguesa referiu a exposição, reproduziu
alguns desenhos, publicou a fotografia de Almada. O mais importante, contudo, é
que atraiu Fernando Pessoa que, escreveu sobre Almada, na revista Águia:
“Eu creio que ele tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lápis, se
liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe
inteligência absoluta.” Começou a visibilidade pública de Almada. Mas começou
também o convívio e cumplicidade com Pessoa. Abria-se o caminho para o Orpheu.
Vai ser ainda no Largo do Calhariz que Almada faz na Liga Naval, em Maio de
1921, a conferência A Invenção do Dia Claro, um ano depois publicada em
livro com a chancela da Olisipo, uma das aventuras editoriais de Fernando
Pessoa.
Trazia a
memória escaldante de Paris. Era uma vedeta da primeira página desde o primeiro
número do Diário de Lisboa que principiara há um mês e iria durar 70
anos. Almada desdobrava-se em projetos, no desenho, na ilustração, no cinema,
no teatro, na dança, no bailado, no afrontamento, direto com os velhos e com os
novos, com os valores, os preconceitos, os códigos morais e as cartilhas
estéticas e literárias em circulação.
N’ A Cena
do Ódio – escrita quando residia na Rua do Alecrim, outra fronteira do
Chiado – está em paralelo com a desconstrução criativa e o furor épico de Álvaro
de Campos, mas atinge outra dimensão n’ A Invenção do Dia Claro.
Estabeleceu o reencontro da poesia com o desenho e a pintura; aprofundou a
reflexão sobre a linguagem e através dela sobre a existência humana. Entre o
vivido e o escrito desvenda as geografias que a imaginação concebeu. Quer, a
todo o custo, recuperar os afetos perdidos. A atenção dirige-se para a memória
e o quotidiano. A palavra é concisa ou pujante: as coisas mais vulgares surgem
transfiguradas.
Hoje 7 de
Abril, o encerramento do ciclo dos 120 anos do nascimento proporciona, no
Grémio Literário, um encontro com a presença e intervenção de alguns que
conheceram Almada Negreiros e com ele ainda privaram na intimidade. Também José
Quaresma, professor da Faculdade de Belas Artes de Lisboa vai promover, a
partir de 6 de Maio, e à semelhança dos últimos cinco anos, um conjunto de
iniciativas – em que se destacam a personalidade e a obra de Almada Negreiros e
o Chiado – no âmbito da reflexão e da produção artística que problematize as
origens e a atualidade da dramaturgia e da performance em estreita
relação com as noções de Esfera Pública e de Arte Pública.
Almada
regressa ao Chiado, aos seus cafés, aos seus restaurantes, aos seus teatros,
aos seus clubes, às suas livrarias, a outras instituições, às suas próprias
esquinas a todo aquele universo que, desde sempre integrou as duas faces
distintas da arte, da literatura e da vida: a tradição e a rutura, o
antagonismo das gerações em conflito. Para Almada o Chiado constituiu a arena
dos grandes combates que travou enfrentando tudo e todos. Para derramar e
explodir: “Luz, a luz, tal e qual, que é, presença de cada qual”. Com essa
irradiação de luz mudou a arte e a Literatura. Mudou Portugal.”
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