segunda-feira, 7 de abril de 2014

ALMADA NEGREIROS, REGRESSO AO CHIADO

 
“Os 120 anos do nascimento de Almada Negreiros, que agora se completam, têm constituído pretexto para uma série de manifestações e homenagens que abrangem o artista plástico, o poeta, o romancista, o novelista, o dramaturgo, o panfletário e, simultaneamente, o grupo e a geração de Orpheu, a diversidade de percursos e atitudes que, no seu todo, configuram um momento histórico na procura e afirmação da modernidade.
 
Desde sempre o Chiado e os seus locais mais emblemáticos permanecem associados às múltiplas intervenções de Almada Negreiros. Foi tão íntima e tão longa essa relação física e cultural que do Chiado se poderia dizer que era a sua própria casa, numa Lisboa mergulhada nas guerrilhas da República e numa sociedade imobilizada no seculo XIX e, ao mesmo tempo, com a ambição ilimitada de atingir o mundo para um diálogo com as vanguardas europeias.
 
Partilhou o Chiado com Sónia e Robert Delaunay, quando se refugiaram em Portugal, a fugir a guerra de 14; com Diaguilew e outras figuras dos Bailados Russos que ao chegarem a Lisboa são apanhados de surpresa com a revolução de Sidónio Pais; também num hotel do Chiado, em 1947, falou com Miró, ao passar por Lisboa a caminho de Nova Iorque. O encontro a que também assistiu António Dacosta ficou registado numa fotografia e no Sempre Fixe, na Fita da Semana, de Carlos Botelho.
 
O aparecimento de Almada, como desenhador e caricaturista, decorreu em 1912, no 1.º Salão dos Humoristas, uma exposição coletiva no Grémio Literário inaugurada pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga. Em 14 de Abril de 1917 apresentou no São Luís (antigo Teatro República) O Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX – uma explosão de intenções e chicotadas para romper a indiferença e sacudir a rotina. Uma entrega total de energia para mudar o País.
 
Interveio, no Chiado Terrasse, a 18 de Dezembro de 1921, no Comício dos Novos com Gualdino Gomes a presidir, Aquilino Ribeiro na mesa e, entre a assistência perplexa. Foi outra proclamação futurista contra os modelos dominantes. Expôs na Bobone, uma das raras galerias de Lisboa, com tradições oitocentistas; e depois de regressar de Espanha, nos anos 30, fez uma exposição na UP, uma galeria na rua Serpa Pinto, dirigida por António Pedro, onde Vieira da Silva apresentou os primeiros trabalhos.
 
A editorial Ática, fundada por Luis de Montalvor, um dos participantes do Orpheu – e autor do título da revista – teve a primeira sede na esquina da rua do Carmo, com a rua Garrett. Ao lançar, a partir de 1942, a obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa, Montalvor colocou na capa de cada volume um desenho de Almada, um Pégaso, símbolo mitológico e vivo da poesia em movimento.
 
 
A amizade com Fernando Amado incorporou-o na história do Centro Nacional de Cultura ao debater, em 1946, a “posição do artista na sociedade”. Foi um dos escolhidos para decorar a Brasileira do Chiado que, juntamente com o Bristol Club, introduziu em espaços públicos a consagração da arte moderna.
 
A Brasileira, quase até ao fim, constituiu um dos lugares de convívio diário. Almada, ali se envolveu numa aguerrida cena de pugilato com José de Bragança, a propósito da prioridade da descoberta das perspectivas dos ladrilhos que reuniu num políptico os dois trípticos dos Painéis de São Vicente de Fora.
 
E quando não é no Chiado, é nas suas fronteiras que o deparamos, nos seus primórdios ou nos momentos mais exuberantes da sua carreira. Realizou, a primeira exposição individual, em 1913, na Escola Internacional, na rua da Emenda, a dois passos do largo do Calhariz. A Ilustração Portuguesa referiu a exposição, reproduziu alguns desenhos, publicou a fotografia de Almada. O mais importante, contudo, é que atraiu Fernando Pessoa que, escreveu sobre Almada, na revista Águia: “Eu creio que ele tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lápis, se liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe inteligência absoluta.” Começou a visibilidade pública de Almada. Mas começou também o convívio e cumplicidade com Pessoa. Abria-se o caminho para o Orpheu. Vai ser ainda no Largo do Calhariz que Almada faz na Liga Naval, em Maio de 1921, a conferência A Invenção do Dia Claro, um ano depois publicada em livro com a chancela da Olisipo, uma das aventuras editoriais de Fernando Pessoa.
 
Trazia a memória escaldante de Paris. Era uma vedeta da primeira página desde o primeiro número do Diário de Lisboa que principiara há um mês e iria durar 70 anos. Almada desdobrava-se em projetos, no desenho, na ilustração, no cinema, no teatro, na dança, no bailado, no afrontamento, direto com os velhos e com os novos, com os valores, os preconceitos, os códigos morais e as cartilhas estéticas e literárias em circulação.
 
N’ A Cena do Ódio – escrita quando residia na Rua do Alecrim, outra fronteira do Chiado – está em paralelo com a desconstrução criativa e o furor épico de Álvaro de Campos, mas atinge outra dimensão n’ A Invenção do Dia Claro. Estabeleceu o reencontro da poesia com o desenho e a pintura; aprofundou a reflexão sobre a linguagem e através dela sobre a existência humana. Entre o vivido e o escrito desvenda as geografias que a imaginação concebeu. Quer, a todo o custo, recuperar os afetos perdidos. A atenção dirige-se para a memória e o quotidiano. A palavra é concisa ou pujante: as coisas mais vulgares surgem transfiguradas.
 
 
Hoje 7 de Abril, o encerramento do ciclo dos 120 anos do nascimento proporciona, no Grémio Literário, um encontro com a presença e intervenção de alguns que conheceram Almada Negreiros e com ele ainda privaram na intimidade. Também José Quaresma, professor da Faculdade de Belas Artes de Lisboa vai promover, a partir de 6 de Maio, e à semelhança dos últimos cinco anos, um conjunto de iniciativas – em que se destacam a personalidade e a obra de Almada Negreiros e o Chiado – no âmbito da reflexão e da produção artística que problematize as origens e a atualidade da dramaturgia e da performance em estreita relação com as noções de Esfera Pública e de Arte Pública.
 
Almada regressa ao Chiado, aos seus cafés, aos seus restaurantes, aos seus teatros, aos seus clubes, às suas livrarias, a outras instituições, às suas próprias esquinas a todo aquele universo que, desde sempre integrou as duas faces distintas da arte, da literatura e da vida: a tradição e a rutura, o antagonismo das gerações em conflito. Para Almada o Chiado constituiu a arena dos grandes combates que travou enfrentando tudo e todos. Para derramar e explodir: “Luz, a luz, tal e qual, que é, presença de cada qual”. Com essa irradiação de luz mudou a arte e a Literatura. Mudou Portugal.”
 
[António Valdemarin jornal PÚBLICO (7/04/2014), sublinhados nossos]
 
J.M.M.

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