O poeta que exaltou a génese cósmica da natureza, a celebração panteísta da vida, a reposição da democracia, a ambição de ser europeu e a supremacia dos grandes valores universais - por António Valdemar
A poesia afirma-se na palavra
que desperta outra palavra, mais outra e outras mais enquanto se manifesta o
ímpeto do diálogo interior. Fixa o que surpreende o poeta a cada momento:
as pulsões da terra na sua diversidade, o voo e o canto dos pássaros, a exuberância
das árvores e das flores; o curso dos rios, a inquietação do mar e a
interrogação dos astros. Recorre também à memória da infância e da
adolescência, à vulnerabilidade da condição humana, ao encontro com o mundo
e ao seu permanente desconcerto. É a vida inteira em tudo o que é
deslumbramento e em tudo o que é o seu contrário.
Um dos grandes poetas portugueses da primeira metade do século XX, Afonso Duarte (1884-1958) nasceu na Ereira,
uma das ramificações do concelho de Montemor-o-Velho, próximo da Figueira da
Foz. Integra-se no Baixo Mondego, onde nasceram escritores, poetas, artistas,
mestres universitários e outras personalidades de evidência cultural, política
e social. Basta citar: Fernão Mendes
Pinto e Jorge de Montemor; Manuel Fernandes Tomaz, líder da
revolução liberal; o filósofo Joaquim de
Carvalho; os poetas Afonso Duarte,
João de Barros e Santiago Prezado; os pintores Manuel Jardim, Cândido da Costa Pinto e Eduardo
Nery, o crítico literário João
Gaspar Simões, os cineastas João
César Monteiro e João Mário Grilo.
O itinerário de Afonso Duarte
pode, assim, resumir-se: fez o ensino primário na Ereira e Alfarelos e o ensino
secundário e universitário em Coimbra. Licenciado em Ciências Físico-Naturais,
lecionou em Vila Real de Trás os Montes, em Lisboa e, sobretudo, em Coimbra.
Todas estas cidades deixaram-lhe reminiscências inapagáveis. Todavia, uma das
marcas mais profundas ocorreu na altura em que foi incorporado no serviço
militar, durante a participação de Portugal na primeira Guerra Mundial: ficou
paraplégico e, até à morte, com a mobilidade extremamente reduzida.
A revelação literária de Afonso
Duarte, num órgão de projeção nacional, verifica-se em 1912, na revista Águia, dirigida, no
Porto, por Teixeira de Pascoaes.
Também em 1912 funda, em Coimbra, a revista Rajada que reúne poetas, ensaístas e artistas
plásticos que viriam a salientar-se na cultura e na política: Alberto Veiga Simões, crítico,
historiador, diplomata de carreira e ministro dos Negócios Estrangeiros; Nuno Simões, advogado, ministro de
várias pastas na primeira República, que nunca deixou de escrever nos jornais,
ocupando-se da aproximação cultural luso-brasileira. Almada Negreiros que procurava, então, concluir o Liceu em Coimbra,
apresenta na Rajada alguns
dos seus primeiros desenhos.
Apoiado por João de Barros – ainda em 1912 –, Afonso Duarte tem editado em Lisboa o primeiro livro, Cancioneiro das Pedras. Coloca-nos perante a relação possessiva com a terra, o rio e o mar: «canto o amor de meus campos e baldios/ meu casal que é uma ilha aos quatro ventos». A Ereira com os rigores de inverno fica, por completo, transformada: «As cheias vindas às casas! / tudo afoga em dilúvio, ervilhal e giesta, /do próprio lar as brasas! /o vento assopra ao desamparo, o vento grita, / como um louco varrido! /A Aldeia é um gemido. (…) «Asa do vento, como vens distante? E o vento avança, o vento diz: mais longe!». A exaltação entre o real e o imaginário, feita de árvores, de pedras e de rios, vai prosseguir noutros livros revistos e selecionados, em 1929, num único volume «Os 7 Poemas Líricos”. Predominam os três reinos da natureza. Tema que vai perdurar na criação poética e nas investigações etnográficas sobre os usos, os costumes e as tradições locais: Um Esquema do Cancioneiro Popular Português e O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa.
Dividiu-se entre Coimbra e a Ereira. Regressava sempre à Ereira, mesmo quando residia em Coimbra. Colaborador permanente da Seara Nova, Afonso Duarte identifica-se com a doutrinação e a crítica, desenvolvida a partir de 1921, por aquele grupo e cuja revista – na síntese de Raul Proença – incentiva a formação de “uma opinião pública nacional que exija e apoie as reformas necessárias”. Para garantir “os interesses supremos da nação, opondo-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos”. Reclamava a urgência de “contribuir acima das Pátrias, a união de todas as Pátrias, uma consciência internacional bastante forte para não permitir novas lutas fratricidas”.
A luta pela reposição das liberdades constitucionais, a defesa da República, a rejeição da ditadura determinou, em 1932, o afastamento inexorável de Afonso Duarte da função pública. Tem mais tempo para frequentar as tertúlias, nos cafés de Coimbra, pontos de encontro de conspiração e debate das várias tendências da oposição sujeitas às perseguições da PIDE e à condenação ao ostracismo.
Afonso Duarte estabeleceu a
ponte entre a sua geração e as gerações seguintes. Sem romper com Teixeira de Pascoais que enaltece em
todas as homenagens - «Saúdo-te nos Ares, não na desventura/ da Terra onde
apodrecem as raízes:/Pois as estrelas sabem o que dizes, / os Deuses te mantêm
na sua Altura» - passou a ser reconhecido como um dos mestres da geração da
Presença (Régio, Torga, Nemésio, Branquinho da Fonseca, Adolfo Casais Monteiro). Também será,
anos depois, um dos mestres da geração do Novo
Cancioneiro, os neorrealistas (Carlos de Oliveira, Cochofel,
Joaquim Namorado) que, na revista Vértice, se destacaram no
protesto social e político, ligados ao marxismo e, muitos deles, ao Partido
Comunista, ora como militantes, ora como compagnons
de route.
Tem Afonso Duarte uma produção
literária contínua. A publicação, em 1947, do livro de poemas Ossadas acentua o renome
literário. Optou por uma linguagem despojada e concisa: «Poemas breves/ como
o instante da flor/ que nasceu para morrer». E os exemplos são numerosos: «uma
só rosa vale o roseiral. /Porque me escreves longo o teu poema? /O inspirado
instante sem igual/ acaso não será hora suprema?»
A geração do Orpheu,
em especial a obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa assumem, nos anos 40 e 50, projeção nacional e
internacional. Permanecia, contudo, entre nós, a resistência acerca da
autenticidade dos símbolos e dos mitos que fundamentam a Mensagem; os rasgos torrenciais de Álvaro de Campos na Ode
Marítima e na Ode
Triunfal; e, por exemplo, ao poema Tabacaria (publicado em 1933, na Presença).
Introduziu numa expressão original do registo do tempo, do sentimento de
incerteza, da sensação de vazio, da solidão e incompreensão em face de tudo que
o rodeava e envolvia e até o próprio Fernando
Pessoa.
Numa alusão a estas ruturas que vão consolidar a modernidade portuguesa, Afonso Duarte rejeita «o estilo enovelado dos poetas fáceis».
Não se afasta do modelo literário em que exaltava a Ereira e Coimbra:
«É na poesia lírica dos rios,/ – no sarcasmo das rugas da montanha – no que
me enche de mar, de sonho e desvario – que o meu retrato vivo se desenha”.
A interpelação política, com exigências morais e cívicas, surge nas Ossadas e nos outros
livros seguintes: «Honra. Brio. Dignidade: Onde estais? Quem vos Preza?»
Enfrentava a política e políticos que governavam o País: «Lembram-me bichos,
carochas, centopeias, /musgo, paredes húmidas, bolores, / ao pensar na pobreza!
Ideias. E causam-me suores.»
O poeta foi tudo isto e, ao mesmo tempo, mantinha a ambição de ser
europeu. O ano de 1949 não apagara os horrores da Segunda Guerra Mundial e, no
plano interno, sucediam-se as polémicas em torno do movimento criado devido à
candidatura presidencial de Norton de
Matos. A oposição encontrava-se retalhada. A PIDE multiplica as prisões em
todo o país.
É neste ano que Afonso Duarte
escreveu um dos seus mais conhecidos sonetos Terra Natal. Muito mais do que um soneto é uma
proclamação: «E cá mesmo no extremo Ocidental/duma Europa em
farrapos, eu/quero ser Europeu: quero ser Europeu/ num canto qualquer de
Portugal.» Reportando-se, à situação do país e à sua própria situação como
português e poeta, orgulhoso das suas origens, acrescenta: “Um presídio
será, mas é meu berço!/ nem noutra língua escreveria um verso/ que me soubesse
ao sal desta harmonia.
Afonso Duarte tem publicadas
as suas Obras Completas, mas falta a organização de uma antologia dos poemas mais significativos, para
termos acesso direto à amplitude do poeta que manteve uma cidadania
participativa, procedeu á celebração panteísta da vida, à força cósmica da
natureza e convocava a permanência efetiva no quotidiano dos grandes valores universais.
Afonso Duarte: a ambição de ser europeu – por António Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das Ciências e sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras – cadeira número 4], in Tempo Livre, Maio-Junho 2023 – com sublinhados nossos]
[Trata-se de parte da Comunicação apresentada em Ereira, no 5 de Março de 2023, Homenagem a Afonso Duarte]
J.M.M.
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