domingo, 22 de abril de 2007

DESFILE DOS TRAÍDOS - POR RAUL PROENÇA



Desfile dos Traídos - por Raul Proença

No silêncio e na meia luz do meu gabinete, passa agora por mim, lenta, grave, silenciosa, a legião dos traídos. Passam por mim, debruçam-se sôbre o que escrevo, olham-me nos olhos, penetram-me na consciência. São todos os que sonharam, e viram desfeito o seu sonho; os que morreram, e viram a sua morte inútil; os que esperam, e vão vendo a sua esperança vã.
Vem aquêle que, ao caír em pleno combate, teve a coragem heróica de mergulhar a mão no próprio sangue, e traçar num muro, com essa vermelha tinta ainda fremente, o último grito do seu amor. Passa - e dir-se hia interrogar-me se não sou capaz de escrever também com o próprio sangue.
Vem aquêle que, em tempos de demagogia e reacção, numa casa fechada, atacada a tiro e à bomba, eu vi morrer a meus pés. Os seus grandes olhos absortos abriam-se pávidos, enormes, no espanto de aquela incomensurável infâmia e de aquela incompreensível expiação. Passa - e vejo os seus olhos desmesurados cravados sôbre mim, inquirindo se desfaleço, se tremo, se hesito, se não sou digno de si e do seu martírio. Não, não hesito, velho operário, mártire obscuro, que nessa noite trágica deixaste o teu lugar ocupado pela orfandade e pela viuvez. Eu não me esqueço, sou feito de forma que, mesmo que queira, não posso esquecer. Nunca me desampara o protesto eterno dos teus olhos.

Vem aquêle que, ao ser proclamada a República, expirou dizendo: - Trazia-a dentro do peito! Morreu na dor da sua imensa alegria, e foi talvez o mais feliz de nós todos, porque viu o seu ideal realizado no momento do Génesis, sem queda venal nem pecado original - puro como o sonhara. Passa - e o seu olhar abismado parece dizer: - que fizeram dela? Que fizeram dela? Tê-la hia eu por acaso levado no peito?
E depois vem o imenso tropel dos Vivos - dos Vivos que verdadeiramente querem viver - a vida humana, a vida nobre, a vida do espírito - todos êsses fragmentos de esperança disseminados pelo grande corpo de Portugal, que esperam o momento de se ligar, de se unir, de reconstituir o feixe partido.

Passam - e não sou eu, mas todos eles, que falam pela minha bôca, que pedem o castigo dêste enorme crime, o eclipse desta funda vergonha, o resgate dêste opróbrio, a vitória da sua fé. Passam - e é o próprio futuro de Portugal que passa, com os olhos banhados já na claridade ténue da ante-manhã …

Podeis, pois, abafar a minha voz. A palavra foi solta, e, abafada agora em mim, vai multiplicar-se ... crescer ... fulminar-vos ... E a de todos os que iludistes, os que traístes, os que envergonhastes - de todos os que não desesperam nunca, porque porfiam sempre, como homens - a da Pátria, afinal, querendo perdurar, querendo viver, querendo purificar-se, querendo salvar-se ..."

[Raul Proença, Desfile dos Traídos, in Panfletos. A Ditadura Militar, 10-20 Novembro de 1926, p. 74-76]

J.M.M.

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