Carta de D. António Ferreira Gomes a Oliveira Salazar (Julho 1958)
(...) Quero, sobretudo e antes de tudo, acentuar que aquilo que se opõe à minha consciência é um problema directamente da Igreja. A grande e trágica realidade, que já se conhecia mas que a campanha eleitoral revelou de forma irrefragável e escandalosa, é que a Igreja em Portugal está perdendo a confiança dos seus melhores. Não direi se este processo está em princípio, no meio ou perto do fim; o que é evidente é que tal processo está em curso, por mim penso que muito e muito adiantado. Apresentarei apenas dois factos, que, podendo servir de símbolos, são já de si realidades enormes. No Minho, coração católico de Portugal, onde se pensava que bastaria sempre o abade dar o alarme e todos cantavam imediatamente no coro, no Minha católico, mal os padres começaram a falar de eleições, os homens, sem se importarem com o sentido que seria dado ao ensino, retiraram-se afrontosamente da igreja. Nas juventudes da Acção Católica, onde tanto se quis dizer que os padres andaram a lançar inquietações e dúvidas, os dirigentes mais responsáveis saltam fora dos quadros e da disciplina, para manifestarem a sua inconformidade e desespero, fugindo ao conhecimento dos assistentes (que, apesar de tudo, lhes aconselhariam paciência). São os dois pólos, o da tradição e o da recristianização: do que fica no meio facilmente se poderá julgar (...)
Posso errar, mas creio bem estar com a doutrina da Igreja (aqui não se trata de mera política, mas de filosofia política e de sociologia) ao discordar de doutrinas que, sendo de V. Ex.ª, são da Situação. Permita-me V. Ex.ª que, por me parecer da maior utilidade, eu alinhe aqui algumas dessas oposições, o que farei, por brevidade, sem qualquer demonstração e com um mínimo de aclarações.
Aponta V. Ex.ª, entre as reivindicações de certa campanha, «a reclamação de ser reconhecido o direito de greve» e conclui terminantemente: «Aqui nos separamos». Depois confirmaria V. Ex.ª que «a greve é entre nós um crime».
Tenho realmente pena, porque eles estão com a doutrina da Igreja, e num ponto que, tendo já deixado de ter interesse de maior em vários países, na conjuntura político-económico-social do nosso é, infelizmente, da maior relevância.
- «Nós não aceitamos a ideia da incompatibilidade de interesses entre o patronato e o operariado, mas da sua solidariedade permanente».
Porém, se a oposição de interesses é, na base, a própria evidência, e se a solidariedade só se pode pedir no vértice, quer da empresa quer da profissão, quer da economia geral, mas com a condição das duas partes em presença terem iguais direitos e formas equivalentes de os realizarem!... (...)
Completa V. Ex.ª: «Se uma incompatibilidade de momento põe as forças em risco de chocar-se, é necessário que o defensor do interesse colectivo arbitre a contenda de acordo com a justiça e o bem comum.»
Podia justificar a minha discordância aduzindo o princípio da complementaridade ou função supletiva do Estado, válido em tantas outras e ainda mais, nestas matérias económico-sociais; podia lembrar aquele outro princípio gravíssimo de filosofia social, de que «se cometeria uma injustiça, ao mesmo tempo que se perturbaria seriamente a ordem social, se fossem retiradas aos agrupamentos ordem inferior as funções que esses agrupamentos estariam em condições de exercer eles próprios» (Pio XI). Basta, porém considerar - em aplicação, aliás, desses princípios - a impossibilidade ou inoperância de tal arbitragem. (…)
Todos estamos de acordo em que há dois problemas fundamentais, sem cuja solução não poderá haver paz social, sejam quais forem as aparências. O primeiro é que os frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social entre os membros da comunidade, quer no ponto de vista dos indivíduos quer no dos sectores sociais (e aqui podemos pensar especialmente na lavoura e na miséria do trabalhador do campo). O segundo é que, seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou a uma classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são os colaboradores efectivos, que têm a sua justa quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política (...)
Problema da Igreja é igualmente o corporativismo. A Igreja «comprometeu-se», não com o Estado corporativo, mas com a ordem corporativa da sociedade. E bem sabemos, entre nós, como do respectivo Ministério se quer «comprometer» a Igreja na sua doutrinação e acção (...) Temos de ser francos, talvez brutais; o corporativismo português, como outros já passados, foi realmente um meio de espoliar os operários do direito natural de associação, de que o liberalismo, em 91, os privara, e que tinham reconquistado penosa e sangrentamente. E a isto se chama corporativismo; e com isto se quer comprometer, e na verdade se comprometeu, inútil mas terrivelmente, a Santa Igreja. Isto é pois um problema de Igreja... (...)
[D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, in Carta ao Exmo. Senhor Presidente do Concelho, Dr. Oliveira Salazar, Julho de 1958]
J.M.M.
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