sábado, 23 de fevereiro de 2008

ORAÇÃO FÚNEBRE ... NAS EXÉQUIAS DE EL-REI D. CARLOS I


Oração Fúnebre 

"... Meus senhores:

Não ha arvore sem raizes e não ha rio sem affluentes. Assim o progresso d'um povo, assim a sua decadencia. Nem uma civilisação surge de repente, de
organismo já feito, no meio d'uma nacionalidade, nem a decadencia d'um povo apparece tambem de improviso, promovida rapidamente pelos homens d'uma epoca. Depende de muitos factores, de circumstancias diversas que successivamente se vão accumulando pelo tempo adiante. O mal da patria portugueza vem de longe, e difficilmente pôde determinar-se-Ihe a sua verdadeira origem. O que é certo é que o senhor D. Cados, ao ser investido na suprema magistratura, recebeu com a corôa a triste herança d'uma nação já decahida, illaqueada por enormes encargos, sem administrações vigilantes e quasi desprovida de homens de estado.


Logo, pois, no inicio do seu reinado veio denunciar-se o estado decadente da patria. O ultimatum da Inglaterra, a revolta de 31 de janeiro, a crise financeira, o enorme augmento de impostos que d'ella derivou, são paginas funebres, escriptas umas com sangue, outras com lagrimas, mas todas ellas sem culpa do Rei. Todos estes factos constituem o primeiro período d'este reinado, periodo triste, verdadeiramente lugubre, recingido de bulcões aterradores, prenúncios de tempestades maiores. Dir-se-ia que nos horisontes da patria se apagára para sempre o sol da felicidade (...)

A escola politica d'onde provinha el-rei o senhor D. Carlos I estava radicada de mais no doutrinarismo exaggerado da acção ministerial. E assim o senhor D. Carlos entregára, quasi em absoluto, a governação publica á politica. A politica, porém, senhoreando-se dos destinos da nação não logrou cobrir-se de gloria. Teve lampejos de prosperidade, alguns reflexos de grandeza, não digo que não, mas sem luz bastante para formar uma aureola. D'ahi o accentuar-se cada vez mais a decadencia da patria, e com essa decadencia o descredito da politica, que fatalmente ia incidir na pessoa do Rei. D'esse descredito nasceu uma reacção – a interferencia directa do Rei nos negocios do estado. Pennas brilhantes, e de innegavel valor e auctoridade, advogavam calorosamente essa interferencia, traçando o doloroso quadro da politica portugueza. O Rei hesitou durante longo tempo: medindo o alcance da tentativa e a magnitude das responsabilidades, mal podia decidir-se a tomar por esse caminho. Mas um dia, como que acordando, volveu um olhar retrospectivo e meditativo para as decadencias da patria e julgou emfim dever intervir, chamando um homem que se identificasse comsigo e com o seu plano. Era um plano muito arriscado, ainda assim... (não digo que não) talvez de exito salvador. Mas um tal plano, uma evolução governativa d'esta natureza, reclamava um estadista de grande valor, um estadista completo:- de cabeça bem organisada e sciencia bem fundada; de orientação clara, sem contradições, sem desequilibrios, sem os zig-zags da incerteza; homem sem preoccupação de partidarismos, - porque, meus senhores, o estadista que em horas afflictivas e angustiosas para a patria, tiver tal preoccupação, esse estadista é um elemento nocivo ao seu paiz (...)"

[A. Ayres Pacheco. Cónego da Sé de Lisboa, in No Templo dos Jeronymos. Oração Fúnebre pronnunciada nas exéquias de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luiz Filippe mandadas celebrar pelo governo no dia 25 de Abril de 1908, Lisboa, Impr. Typ. Castro Irmão, 1908]

J.M.M.

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