segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008
REGICÍDIO - UM TESTEMUNHO "SUSPEITO" (PARTE I)
A propósito do acontecimento que temos vindo a dedicar alguma atenção nos últimos tempos e face à leitura dos acontecimentos proposta pela série televisiva O Dia do Regicídio, apresentaremos nos próximos dias algumas propostas de leitura, mais ou menos conhecidas, acerca do evento em causa.
No ido ano de 1921, escreveu Aquilino Ribeiro, na recém fundada revista Seara Nova, um conjunto de artigos, que, pensamos, terá ficado inacabado. Este conjunto de artigos intitulava-se O regicídio e os regicidas e, do primeiro, publicado no número quatro, da revista supra-referida, datado de 5 de Dezembro de 1921, afirmava acerca do seu amigo, compadre e "primo":
Era Manuel Buiça dos mais assíduos frequentadores do Gelo, esse café todo arrumado a meio do Rocio tumultuário, que, não obstante o berrante das fardas, conserva um ar todo plácido de botequim provincial. As suas horas, nas meias manhãs preguiçosas de Lisboa, quando, tão lentas e doces, os senhores burocratas vão por aí abaixo mais brandos que liteira, ou à noite, depois do jantar, Buiça era certo à mesa branca do Gelo, na parte que olha a R. do Príncipe, um cálice de cognac à frente, escrevendo cartas ou cavaqueando alto com amigos ou próximos [...]
Note-se a caracterização física e psicológica que Aquilino fazia sobre Buiça:
Curioso este tipo de português, vindo do Norte, da parte mais resistentemente nacional, godo que aflorasse na linha longa das gerações, genuíno, inquieto e batalhador como a flor estreme da raça. De corpo, era um homem de estatura meã, rosto fino, tez branca que mais realçava a barba preta com tons de fogo, na qual as suas mãos tinham o vício de passear-se, de embrenhar-se, quando a cólera o tomava ou ouvia alguém do seu agrado. A testa era longa, com as arcadas superciliares marcadas sem demais, as linhas fisionómicas duma delicadeza que, fóra das mulheres, desagrada. A aparência, toda ela de franzino, mascarava-lhe inteiramente um génio assomadiço e a coragem que não era lenta nem jamais foi receosa a medir-se. Parecia um delicado, destes homens para produzir os quais a vida das cidades esculpiu sobre a carne de gerações e gerações, desengrossando, limando, amaneirando, e era uma planta vivaz das serras. Só os olhos muito móveis e azues, mas sem fereza, traíam nele o ânimo expeditivo e a índole que, além de resoluta, era exaltada. Os seus modos espalhafatosos seriam detestáveis se não houvesse a contrabalançá-los uma grande e sincera franqueza, da mesma forma que "aquele dar-se todo" torna-lo-ia suspeito se o seu carácter se não descobrisse até os planos mais remotos. Mais que a identidade de ideias haviam-no imposto ao grupo revolucionário do Gelo, que paradoxalmente via o mundo através de Nietzsche e dos pensadores russos, haviam-no imposto aquelas virtudes do homem instintivo, generosidade, espontaneidade, poder de estimar e admirar, ao contacto dos quais o homem de pensamento se desvanece.[...]
A sua cultura literária não era também comum. Professor do Colégio Moderno, dava-me a impressão de ter uma inteligência lesta, assimilando sem esforço, mas também sem perdurabilidade. Tinha, no entanto um sentimento bastante largo da vida que nas horas de excitação costumava traduzir pelos baixos epifonemas dum pessimismo exagerado.[...]
Era isto tudo, galante, franco, liberal, corajoso, blasonador, incoerente muitas vezes, parlapatão mais duma, sem equilíbrio na vida, sem disciplina moral, uma ou outra anomalia medrando a meio de sentmentos que, além de ser puros, pareciam ser inibitórios. Assim, Buiça, que era um pai extremosíssimo, se não exacto, presando a sua mulher e tendo pelos filhos uma adoração sem limites, a pontos de tresnoitado ou embriagado, o que sucedia por vezes, se não poder deitar sem os beijar e se abraçar neles, mantinha correspondência de amor com uma menina de Lisboa. [...]
[Na foto: o Café Gelo, em Lisboa, nos inícios do séc. XX, um dos lugares de conspiração mais em destaque na época. Por lá passaram os regicidas, carbonários e maçons que trabalhavam para derrubar a Monarquia. In Arquivo Fotográfico com a devida vénia.]
A.A.B.M.
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