sábado, 10 de maio de 2008


Vitorino Magalhães Godinho no Expresso

" ... Em Janeiro de 1947, Magalhães Godinho iniciara uma compensadora carreira académica em Paris. No início, bolseiro do CNRS (Centre Nationale de Recherches Scientifiques) ainda tivera dificuldades em encontrar casa (começa por se instalar no Hotel de S. Pierre, que mais tarde aconselhará a Mário Soares) e em fazer render os francos, que lhe permitem ir suportando as investigações que efectua, de permeio com os vários cursos e seminários que frequenta. Dois anos depois, a situação está estabilizada. Para o facto, muito terá contribuído a circunstância de Maria Antonieta Cordeiro Ferreira, com quem casara em 1942, ter passado a fazer-lhe companhia. A mulher, um ano mais nova, era então a melhor aluna da Faculdade de Letras de Lisboa. Ainda assim, não hesitou em transferir a conclusão da licenciatura para a capital francesa, mesmo se isso a obrigava a fazer umas traduções "por fora" para equilibrar o orçamento familiar (...)

Em Junho de 1959, Magalhães Godinho está a prestar provas de "doutoramento de Estado" na Sorbonne, defendendo as 1600 páginas de texto, escritas directamente em francês, que a mulher havia dactilografado. O tema é a Economia dos Descobrimentos. As provas começam às 13,15h e acabam cinco horas mais tarde. Na sala, um auditório onde há um enorme retrato do cardeal Richellieu, estão presentes, idos expressamente de Portugal, os pais e a irmã mais velha. É de calcular o que sentem quando Godinho obtém do júri a mais alta menção: "très honorable". A família vai toda jantar ao Hotel Lutecia. Poucos dias depois, o novo doutor oferece uma pequena recepção na sua residência em Arcueille - um banlieu ao sul de Paris (...) A família que reside em Portugal não pára de o tentar convencer a regressar. E o próprio professor, por melhor que se sinta perto do Sena, não consegue convencer-se de que as competências que lhe são reconhecidas no estrangeiro não possam ser postas ao serviço do seu pais.

É neste estado de espírito que Adriano Moreira o vai encontrar em Paris, em finais de 1959. O director do ISEU (Instituto Superior de Estudos Ultramarinos) oferece-lhe a regência de duas cadeiras: Metodologia das Ciências Sociais e Economia e Sociologia Históricas. Godinho não conhece Adriano pessoalmente. Sabe, tão só, que ele tem aspirações a "reformar" o salazarismo, coisa em que o interlocutor não acredita de todo. Para que não haja confusões, Godinho diz-lhe: "Eu sou da oposição e não mudo. Não quero ir para lá para uma prateleira". O director responde: "Mas com certeza". Em Outubro de 1960, o novel doutorado da Sorbonne está a dar aulas no ISEU. "Há sempre um bocado de lotaria nas nossas decisões", tenta explicar, quase meio século depois (...)

Nessa altura, já Adriano Moreira se tornara subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, dando início a uma carreira política que culminará, em Abril de 1961, na nomeação por Salazar para ministro do Ultramar. A direcção do Instituto é assumida por Silva Rego, que Godinho descreve como "um padre que se dedicava vagamente à História" . É já a ele, que não dá um passo sem pedir licença ao futuro presidente do CDS, que o professor dirige uma carta, no auge da crise estudantil de 1962.

Mal a "crise" rebentara, uma vintena de catedráticos da Universidade Clássica de Lisboa tinham-se reunido, para redigir um documento de solidariedade com as reivindicações estudantis, a entregar ao Governo. Mas o documento nunca chegara ao destino. Godinho faz desabar a sua revolta sobre Silva Rego, a quem, depois de criticar o silêncio do Instituto, propõe a realização de uma reunião do Conselho Escolar, para aprovar uma moção que considere o Ministério da Educação Nacional como "o único responsável das situações criadas". Como resposta à missiva, recebe a instauração de um processo disciplinar, conduzido pelo juiz desembargador Gouveia da Veiga, que culmina num despacho determinando o seu despedimento do ISEU (mais tarde, ISCSPU - Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) (...)

Entre os actuais amigos não é difícil descobrir, no entanto, gente de pensamento diverso [mas com] Adriano Moreira é que as coisas nunca se recompuseram. Reencontraram-se uma única vez, já depois do 25 de Abril, no Instituto de Defesa Nacional, tendo-se ignorado mutuamente. "Posso perdoar a perseguição, não a cobardia", explica Magalhães Godinho, que acusa o ex-ministro do Ultramar de Salazar de se ter escudado sempre em alegadas pressões do Presidente do Conselho para justificar aquele que foi o único despedimento de um professor na crise académica de 1962 ..."

[ler trecho do artigo aqui - in Única (Expresso), 10 de Maio de 2008, p. 80-92 - sublinhados nossos]

J.M.M.

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