quinta-feira, 20 de setembro de 2012

POLÉMICA HISTORIOGRÁFICA

A propósito da polémica historiográfica que tem marcado este ano e a publicação da História de Portugal, coord. Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa reeditada agora em vários volumes pelo Expresso e que tanta polémica tem provocado, conheceu hoje um novo contributo, agora de Luís Reis Torgal, cujo texto foi também publicado no jornal Publico e que, com a devida vénia retiramos do blogue de Joana Lopes, Entre as Brumas da Memória.

RUI RAMOS E O REABRIR DA POLÉMICA SOBRE A "HISTÓRIA DE DIVULGAÇÃO" DO ESTADO NOVO

"Em Janeiro de 2011 apresentei uma comunicação sobre a historiografia do Estado Novo num colóquio organizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre outras considerações, abordei criticamente os textos de dois historiadores: Rui Ramos e Filipe Ribeiro de Meneses. Assistimos agora a uma polémica entre Manuel Loff e Rui Ramos, nas páginas do PÚBLICO, que se alargou a um artigo, que não tive ocasião de ler, de António Araújo, a uma pequena, violenta e inconveniente nota de Maria Filomena Mónica, e, depois, a vários outros textos de valor e significado diferentes, entre eles um artigo de um dos melhores especialistas do Estado Novo, Fernando Rosas.

Não querendo entrar nas questões mais pessoais que se levantaram, achei que não devia ficar de fora, dado que me refiro constantemente nos meus textos à falta de um debate público sobre a historiografia e sobre outros temas de ciência e de cultura. Limito-me, porém, por agora, a isolar e a adaptar o texto que escrevi então sobre Rui Ramos, que faz parte, portanto, de um artigo mais lato e complexo que continua à espera de ser publicado nas actas do referido colóquio. Como se verá, não é, pois, a primeira vez que a obra de Rui Ramos suscita, saudavelmente, alguma polémica. A reedição da História de Portugal em pequenos volumes pelo Expresso, coordenada por este historiador, veio, afinal, reabrir velhas questões.

A obra, no seu conjunto, mereceu, obviamente, elogios desde a sua apresentação, na Sociedade de Geografia, pelo sociólogo António Barreto, que, sobretudo, louvou o seu sentido narrativo e de fácil compreensão, onde estava ausente um exercício teorizador. No entanto, a parte relativa ao regime Salazar-Caetano, assinada por Rui Ramos, provocou logo alguma discussão, proporcionada pelo trabalho da jornalista São José Almeida, que entrevistou e transcreveu pequenos passos das opiniões emitidas por alguns historiadores do Estado Novo, como António Costa Pinto, Manuel de Lucena, Manuel Loff, Irene Flunser Pimentel, Fernando Rosas, para além de afirmações do próprio Rui Ramos. O artigo teve o sintomático título “A História de Rui Ramos desculpabiliza o Estado Novo” (PÚBLICO, 31 de Maio de 2010).

Não valerá a pena analisar cada opinião, pois não se chegaria a grandes conclusões, dado até, precisamente, o carácter de curtas passagens que foram extraídas pela jornalista às palavras de cada um dos interlocutores. Apenas poderei resumir esse debate (se é que de debate se tratou) com a própria síntese da jornalista do PÚBLICO: “Rui Ramos lamenta que em Portugal a História seja vista ‘a preto e branco, ou esquerda ou direita’. E que se conviva mal com diferentes interpretações do passado. Mas outros historiadores vêem na mais recente História de Portugal, coordenada por este autor, um discurso que desculpabiliza o Estado Novo e diaboliza a I República. Há mesmo quem fale de ‘legitimação’ do discurso de Salazar. E quem acuse esta História de ignorar a violência daqueles anos”.

Não entro nessa discussão para que, de resto, não fui convidado, mas posso sim discutir a metodologia de análise de Rui Ramos.

Acima de tudo, gosto sempre de salientar que só divulga quem sabe, ou seja, quem investigou. Caso contrário, corremos o risco — evidente no Estado Novo, em “obras do regime”, como a História de Portugal de João Ameal, que constituiu um verdadeiro best-seller — de reduzirmos a História a um discurso narrativo de tipo mais ou menos ideológico. Mas, se, por um lado, a divulgação não pode ser um discurso literário, normalmente atraente, também é perigoso que seja uma simples narrativa aparentemente asséptica e com pretensões científicas, que pode ser, por outro lado, uma grande arma da ideologia.

Rui Ramos não é um especialista do Estado Novo e usou exactamente o método tão elogiado por Barreto, ou seja, a narrativa não teorizadora. Mas, a problematização é o que de mais aliciante tem a História e que provoca no leitor medianamente culto (o outro lê sempre qualquer coisa, até as Histórias rocambolescas da História de Portugal, pensando que está a ler um livro de História) o gosto pela reflexão crítica, o que — aí concordarei com Rui Ramos, se entender o conceito como eu — o leva a ler a História não “a preto e branco”, mas com todas as cores, ou, por outras palavras, de forma poliédrica.

Ora, se lermos as páginas sobre o Estado Novo da História de Portugal (eu li-as na edição principal e não nesta edição em volumes), não nos apercebemos que Salazar se formou num denso complexo de realidades e de concepções do Estado. Sobressaíam então, para além das teses e práticas republicanas mais radicais que geravam naturais reacções, posições republicanas conservadoras e nacionalistas, o corporativismo católico, com as suas teses sociológicas e pedagógicas, ideias integralistas que jamais apontavam para a noção de uma “monarquia absoluta” (como diz Ramos e que era, ao invés, uma ideia que os integralistas combatiam), ideologias fascistas que surgiram em Portugal logo no contexto da “marcha sobre Roma” e, mais tardiamente, apaixonadas afirmações nacionais-sindicalistas, que não se afastavam mesmo do nazismo nascente. Seguindo a narrativa de Rui Ramos, tudo surge de forma natural, formando-se um Estado onde a regra era “viver habitualmente” (ideologia captada em Salazar, em 1938, por Henri Massis, mas que já se encontra na entrevista de António Ferro), no sentido de uma “nova democracia”, onde a palavra “totalitarismo” era proibida, onde se verificava uma “ditadura moderada” (mais moderada do que na própria República) com uma repressão dirigida (esquecendo as vicissitudes de toda a oposição, fosse ela qual fosse), onde havia uma “pluralidade cultural” (como se tendências de oposição pudessem ser integradas na concepção do Estado Novo e não fossem contra ele e alvo da sua repressão)… Mais ainda: onde havia uma concepção de “assimilação” em relação aos naturais das colónias (só tardiamente notória), onde se deu uma guerra colonial (que conheci, na Guiné, no final dos anos sessenta) em que os movimentos de independência acabaram por ter pouco significado social e até militar, onde as estatísticas provam o desenvolvimento de Portugal (que pode ser um facto em determinadas áreas e conjunturas)…

Nada é discutido e problematizado e mesmo o conceito de “fascismo de cátedra” utilizado pela interessante caracterização de Unamuno, numa reflexão jornalística do Ahora, dado a conhecer primeiro por João Medina, é transformado na expressão “ditadura catedrática”, e o conceito de “totalitarismo” não é observado sistematicamente, apesar de, na verdade, ter sido utilizado e discutido por homens próximos de Salazar (como Bissaya Barreto ou Águedo de Oliveira, Mário de Figueiredo ou Manuel Rodrigues). E seria bom que Ramos entendesse que a História se compreende numa lógica diacrónica, mas também sincrónica. É certo que aproxima uma vez o corporativismo de Salazar do de Mussolini, mas haveria que estender essa comparação a outras áreas e perceber que, para além de um “fascismo de movimento”, há um “fascismo de regime”, fascismo ao qual o salazarismo não foi imune, a ponto de se poder sempre perguntar, como fizeram alguns historiadores desde Manuel Lucena (a quem se deve a feliz e problematizadora expressão de que o Estado Novo poderia ser considerado “um fascismo sem movimento fascista”), com respostas diferentes, se era ou não possível integrar o salazarismo num “fascismo genérico”.

A História não pode ser apenas interpretada por sintomas e factos escolhidos previamente, mas — quer se queira quer não (eu que fui influenciado pela metodologia dos Annales, antes de ela se expandir em Portugal, mas que repudiei expressivamente os seus exageros e a máxima imperialista da “história nova”) — tem de ser vista também pela análise das estruturas, que nos podem dar a conhecer o que os factos isolados nos escondem. O grande erro de Rui Ramos, numa história de divulgação, é, pois, pensar que esta é uma pura narrativa do que não se conhece bem, mas de que se podem tirar ilações que interessam ao leitor e o podem orientar. E isso ainda é mais discutível se pensarmos, como Ramos, que a divulgação se pode igualmente fazer, mais livre e despreocupadamente, numa linha “jornalística” — com todo o respeito que tenho pelo jornalismo de investigação — e até utilizando a “história do se…” (“Sá Carneiro. E se ele não tivesse morrido?”, Expresso, Revista Única, 27 de Novembro de 2010) ou da “história virtual” (como diz, à maneira anglo-saxónica) ou da metáfora do “nariz de Cleópatra”, discutida pelo meu mestre Sílvio Lima em 1960, demitido por Salazar em 1935, mas, felizmente, reintegrado nos anos quarenta. Como se vê (agora digo- o eu, em “à parte”), simples liberais eram objecto da repressão salazarista…

No suplemento do Actual do Expresso (24 de Julho de 2010), Rui Ramos escreveu, nos quarenta anos da morte de Salazar, um artigo de fundo sobre o ditador, que praticamente começa assim: “O problema está em que, se quisermos ser exactos, teremos de admitir que foi precisamente com Salazar que Portugal começou a ser menos pobre, menos analfabeto e mais europeu". Chavões deste tipo, com afirmações de meias verdades não contextualizadas, tornam a divulgação tendenciosa. O mesmo se dirá da afirmação, pura e simples: "O Estado Social em Portugal foi salazarista antes de ser democrático". Quanto à repressão, apesar de Ramos concordar que Salazar, quando queria, "podia ser implacável", o que fica no leitor é outro chavão: "Quando comparamos a ditadura salazarista com as suas contemporâneas, a quantidade repressiva é modesta". No que se refere ao colonialismo, refere aquilo que se poderia dizer de outra maneira e com outra contextualização explicativa, sem o efeito de frases que constituíam verdadeiros "slogans de propaganda": "O colonialismo não começou com Salazar. Liberais e republicanos tinham viabilizado as colónias, submetendo as populações ao trabalho forçado administrado pelo Estado". E, a terminar o artigo nem redigido – a boa escrita e a boa comunicação oral são dois factores, por paradoxal que pareça, muito perigosos na dita "divulgação da História", – escreve, simplificando e dando um tom de ficção literária à sua escrita: "Numa quinta-feira de céu cinzento, a 25 de Abril de 1974, tudo foi derrubado como um cenário de papelão. Nenhum movimento político reivindicou, desde então, as ideias de Salazar. Em 2007, a sua vitória num concurso televisivo foi mais um sinal de iconoclastia, contra o velho antifascismo oficial, do que saudosismo. Falamos dele, mas é isso: falamos. Valem-lhe os antifascistas para o conservarem ameaçadoramente 'vivo'. Terá ele imaginado este fiasco final? Nos seus últimos anos de vida, entre 1968 e 1970, não lhe disseram que fora substituído no Governo, mas, como notou Adriano Moreira, ele também não perguntou. Nunca quis saber o resto da história.

Palavras e frases, provavelmente bem construídas, mas sem nenhuma reflexão profunda... – é esta a técnica de divulgação de Ramos, parecendo não entender que a História supõe sempre uma análise e uma reflexão problematizadoras. Que fique claro, não é o facto de Rui Ramos se afirmar como "homem de direita" que me leva a estas considerações. Como cidadão pode ser o que quiser e entender, mas como historiador tem de seguir uma linha metodológica científica, mesmo na arte da divulgação. A menos que entenda que a História não é uma Ciência que procura a objectividade, mas uma pura ficção subjectiva que pode ser – utilizando as suas palavras – de "direita" ou de "esquerda".

Mais um contributo, muito importante, sobre a razão de ser desta polémica que envolve os historiadores, sobretudo quando se estudam temas muito próximos em termos temporais e quando as razões, contextos e conceitos de cada um podem influenciar as leituras que se fazem dos acontecimentos.

Uma reflexão serena, de base conceptual e metodológica que nos merece a melhor atenção e, sobretudo, porque incide em problemáticas da investigação histórica, tentando colocar de lado outras questões paralelas, essas sim secundárias e menos importantes para os interessados na temática.

A ler com toda a atenção.

A.A.B.M.

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