Cunha Leal, “As Minhas memórias. Coisas de Tempos Idos”, Lisboa,
Livraria Petrony (Edição do Autor), 1966-67-68 (372+480-432 p.), III vols.
vol. I – Romance duma época, duma família e duma vida de 1888 a
1917
vol. II – Na periferia do tufão. De 1 de Janeiro de 1917 a 28 de Maio de 1926
vol. III – Arrastado pela fúria do tufão. De 28 de Maio de 1926 a 4 de Dezembro de 1930
“É toda a História nacional de uma época de grandes convulsões o
que temos aqui patente, pela mão de um dos seus protagonistas. Há que sublinhar
à cabeça a limpidez literária de exposição com que o Autor nos reporta o que,
sendo ele governador do Banco de Angola, o tornou um dos mais notáveis e
recalcitrantes opositores à ditadura salazarista. vol. II – Na periferia do tufão. De 1 de Janeiro de 1917 a 28 de Maio de 1926
vol. III – Arrastado pela fúria do tufão. De 28 de Maio de 1926 a 4 de Dezembro de 1930
Obra de crucial importância para se perceber como essa oposição
à política posta em marcha por Salazar/Quirino de Jesus teve raízes muito para
além do conveniente ‘papão comunista’, e como os ajustes de contas eram
distribuídos a torto e a direito por quem quer que, mesmo com razoabilidade,
fizesse frente à “direcção única”. E foi nessa qualidade de governador que Cunha
Leal, ao recomendar políticas económicas diversas – numa conferência pública
proferida na Associação Comercial de Lisboa em 1930, expondo a degradante
situação financeiro-produtiva de Angola – acabou por vir a conhecer, sob
pretextos vários, ‘em fases sucessivas, o cárcere e a deportação, com o seu
cortejo de violências’.
Algumas passagens genéricas:
“… estamos sendo arrastados pelo ciclone que teve a longínqua origem em 28 de
Maio de 1926. Na sua fase hodierna, os nossos Poderes Públicos já se não
limitam a subordinar os graus de liberdade da pessoa humana e os seus
correlativos movimentos físicos às determinações dum ditador que a si próprio e
talvez – quem sabe? – com sinceridade se alcunhe de paternal, por isso que
pretendem impor-nos obediência à fórmula tradicional do misticismo jesuítico –
faz o que eu mande, pensa o que eu pense, quer o que eu queira. Irromper pela
interioridade deste tufão a expressar desacordos e oposição venho-o fazendo ao
longo de quarenta anos e ainda perduram no meu corpo e na minha alma as
mataduras desse inconformismo. [...]
A minha presente tentativa explica-se, pura e simplesmente, pela
ânsia de concorrer para a salvação duma nau preciosa prestes a naufragar, ou
seja Portugal, já sem tripulação susceptível de grandes e oportunas reacções,
num alheamento duma mística salutar.
Como é que se conseguiu efectivar esta descomunal constrição
duma grei inteira, de modo a convertê-la em rebanho pávido, sorumbaticamente
submisso, incapacitado, pelo menos na aparência, para os movimentos das gentes,
que, em todas as emergências, sabem preservar a noção de dignidade?
Em boa verdade, não havia, de início, um plano metódico de
domesticação colectiva. Havia apenas – isso, sim – o firme intuito do
reaccionarismo indígena de suscitar, com o apoio extorquido ao Exército por
meios capciosos, um vendaval à custa de cuja força crescente se lhe tornasse
possível varrer da superfície de Portugal os mais ligeiros resquícios de
democracia, sempre com os olhos fitos, avidamente, na ressurreição, embora
longínqua, da Monarquia de estirpe miguelista. [...]
Em que é que consistiu, por conseguinte, o mais valioso trunfo
do seu sucesso? Em ter às suas omnipotentes ordens um Exército passivamente
obediente para impor o seu receituário financeiro, acertado ou desacertado, sem
prévia audiência do País e sem vislumbres de respeito pelos interesses
colectivos, ainda quando absolutamente legítimos. A regra de conduta social
passou a ser a seguinte: manda quem pode, obedece quem deve. [...]
Quem, neste ano já distante de 1967, meditar, porém, na tragédia
angolana desencadeada em princípios de 1961, se for desprovido de cegueira
partidarista, haverá de chegar, por certo, à conclusão de que a longínqua
génesis desse fenómeno deva ser retrotraída aos erros iniciais de visão do
Ditador português no tocante às directrizes da nossa política ultramarina,
erros que, em 1930, me afoitei a obstaculizar, sem – ai de mim e ai do País! – ter
força bastante para isso...[...]"
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