sexta-feira, 29 de agosto de 2014

JOSÉ BAÇÃO LEAL (1942-1965) – “POESIAS E CARTAS”


Poesias e Cartas” (2ª ed.) de José Bação Leal (pref. de Urbano Tavares Rodrigues), Porto, Tip. Vale Formoso (Rua Antero de Quental), 1971, 160 p. [a 1ª ed. data de Setembro de 1966, de circulação muito restrita de 250 expl., foi publicada por Francisco José da Silva Alves & José Mário Fidalgo dos Santos, 88 p.]

NOTA BREVE: José [Crisóstomo Gomes] Bação Leal, filho de João Bação Leal (médico) e de Maria Emília Gomes, nasceu em Lisboa a 1 de Julho de 1942. Estudou no Colégio Militar, fez a recruta na Escola Prática de Infantaria de Mafra, integra o corpo militar em Lamego e embarca para combater em Moçambique, onde morre (Nampula), a 1 de Setembro de 1965, por “rebentamento de uma mina perto do Lago Niassa, onde se encontrava o batalhão a que pertencia”.

José Bação Leal cedo revelou uma invulgar atenção pela literatura, cinema, filosofia e política, “uma sensibilidade à flor da pele e uma consciência política rara naqueles tempos” [ver AQUI]. Deixou-nos, graças a homenagem feita por amigos e, depois, na sua reedição em 1971 (reedição feita pelo seu pai), um obra póstuma, “Poesias e Cartas”, que foi apreendida pela PIDE.

Sai hoje esse livro, via jornal Público, livro que nos faz “conviver humana e esteticamente com quem teria porventura vindo a ser – não lhe tivessem truncado a vida a crueldade e a insânia que ele denuncia – um dos maiores escritores da língua portuguesa do nosso tempo, este livro fica para sempre, no seu valor testemunhal, como um marco histórico (resumindo a agonia e o martírio de tantos e tantos jovens absurdamente torcidos ou, como ele, quebrados ao arrepio da história, na sua natureza e nas suas opções)” [Urbano Tavares Rodrigues, in pref.].

Eis, portanto, um “apaixonante documento de consciência, que por ser rigorosamente localizado, resulta ainda mais tragicamente universal” [ibidem]. A não perder! E a ler!

Encontrei-me. Sou poeta
cantem estrelas para mim
murmurem flores os meus versos de sangue
que eu farei da noite
o mais belo gesto de oferta

“Noite / Se tivesses boca e fosses mulher / conheceria o morrer de amor”

“...poeticamente exausto, verticalmente só... lembro memória dum qualquer verão em nenhuma parte. Percorro o suor dos mortos. Acabo em cada boca que começa. E como os mortos suaram antes da guitarra de barro! Kid, companheiro antiquíssimo: pergunto: o desespero já foi jovem? Quem doará seu rosto ao trigo da aurora? Quem, quando a areia crescer nos olhos, resolverá a rosa marítima? ESCREVE! Nada sei da mulher que possuíste em casa da Lena. Sei somente das jovens que a cidade digeriu... Sei todas as cidades do nocturno mapa do esquecimento...” (p.63)

Tento habituar-me a tartar por tu trovoadas.
Resolvi aceitar o sol de quando em vez débil.
Apaixonei-me, melhor, ando de bem com a chuva morna. Deixei de beber, apenas sorvo telhados …” (p. 74)

“Tudo isto é como beijar os cabelos verdes duma criança loura, ou acordar pendurado numa corda de sono! Ás vezes penso em Deus e como Ele nos abandonou entre paredes só de pedra. E em como não criou humanas paredes que nos abraçassem na altura própria …” (p. 129)

LINK: POETICAMENTE EXAUSTO, VERTICALMENTE SÓ - a história de José Bação Leal


(trailer) POETICAMENTE EXAUSTO, VERTICALMENTE SÓ - a film by Luísa Marinho (2007) from Persona Non Grata on Vimeo.

J.M.M.

2 comentários:

Maria C. Costa disse...

Meu apontamento sobre o livro “POESIAS E CARTAS”
De José Bação Leal – 1942-1965

O primeiro livro que me deu uma visão do que era a guerra no Ultramar, para bem longe do que eu podia imaginar, foi “Os Cús de Judas” de António Lobo Antunes.
Hoje, 30 de Agosto, adquirimos, com o Jornal Público, o livro “Poesias e Cartas” que, em 1971, foi lançado a título póstumo e proibido de circular no país, conforme informação da Direcção-Geral de Segurança, datada de 23/12/1971. Este, além de proibido, foi considerado clandestino, conforme nota seguinte: “dado que o presente livro não assinala a indicação do Editor, deve esta obra ser considerada clandestina”.

Logo que o folheei e li o poema abaixo, já não consegui parar e em poucas horas engoli todo o seu conteúdo.

“Ah vazio! Eterno vazio!
Vais-me matando aos poucos
estou farto de não viver
não tarda estarei louco
ou morto sem morrer.” (pag.33)

Alguns poemas, como este, ainda me bailam na memória:

“Perdido no nada
encontrei-me um dia
faltava-me tudo
apenas vivia” (pag.34)

À medida que ia lendo as cartas, regressava à ditadura, à minha frustrada juventude, aos anos de guerra. Recordei os vizinhos, os amigos que por lá ficaram, apanhados nas picadas, nas armadinhas, nas ciladas ou no encontro com uma mina perdida. Recordei os que regressaram mutilados de corpo e de alma. Não conseguia parar de ler, apesar do turbilhão que ia na minha cabeça. Para aliviar a pressão, lia as cartas e voltava à poesia:

“O que me cegou? Não sei.
Talvez uma boca desfolhada
talvez o som duma balada
talvez mesmo
o que ainda não pensei” (pag 32)

Voltava às cartas e parava nos seus pensamentos como estes:

“O ar do campo embriaga-me de palavras”

“As frias leis humanas não são justas. Estou certo de que leis diferentes, quais cânticos de justiça, ponderam a minha conduta.”
(pag. 41)

Ocorreu-me que, se eu fosse do sexo masculino, por certo, teria ido parar àquela guerra e, quem sabe, também por lá teria naufragado. Aqui trilhei outras savanas, senti o odor de outro capim. Tal como ele, também senti ódio, senti raiva mas não embrulhados em cheiro a pólvora, nem despertados pelo som do rebentamento de uma mina.

“As poesias nascem dum silêncio
ou duma conversa que temos a sós
com uma dúvida ou uma madrugada
que faz de nós que não somos nada
a própria dúvida mas concretizada” (pag.11)

Não consigo abrandar o pensamento neste jovem e grande poeta que teria tanto para dar, tanto para nos ensinar, não fosse ceifado por aquela horrível e devastadora guerra.

Este poeta não está morto. Tal como o avô do escritor Lobo Antunes estará vivo enquanto ele viver,
este generoso poeta viverá enquanto viverem os seus familiares, os seus amigos e eu.

30 de Agosto de 2014
Maria Clara Pedro Costa

Anónimo disse...

Um belo e justo comentário.