“NatáliaCorreia - Vida com Sentido” - por António Valdemar, in Público
► Presença vigorosa na sociedade portuguesa, da segunda metade do
século XX, Natália Correia (1923-1993) afirmou-se pela singularidade da criação
literária e pela determinação e coragem na intervenção política. Justifica a
homenagem, hoje em Lisboa (às 18h), na Fundação Mário Soares – presidida pelo
próprio Mário Soares, seu amigo e admirador de sempre – e integrada na série
‘Vidas com Sentido’, para distinguir figuras que prestigiaram a cultura e
honraram a cidadania.
Tal como muitos outros intelectuais e artistas da sua geração,
Natália Correia participou em grandes acontecimentos da oposição democrática –
a fundação do MUD, as campanhas para a Presidência da República de Norton de
Matos e Humberto Delgado. Apoiou outras comissões eleitorais, entre as quais a
CEUD (1969) liderada por Mário Soares e que se encontra na génese do Partido
Socialista. Associou-se aos protestos contra o assassinato de Humberto Delgado;
insurgiu-se perante a reabertura do Tarrafal e com a perversa denominação Campo
do Chão Bom, exarada no Diário do Governo; e contra o encerramento da
Sociedade Portuguesa de Escritores por ter premiado a obra de Luandino Vieira,
preso no Tarrafal. Subscreveu documentos de solidariedade a presos políticos e
às greves universitárias.
Teve livros proibidos pela censura como, por exemplo, Canto
do País Emerso, a propósito da ocupação do paquete Santa Maria
comandada por Henrique Galvão; a tragédia jocosa Homúnculo; e a Antologia
da Poesia Erótica e Satírica que organizou e prefaciou, apreendida pela
PIDE, e objeto de processo-crime e julgamento no Tribunal Plenário que a
condenou a três anos de prisão, com pena suspensa.
Logo a seguir ao 25 de Abril, numa entrevista ao Expresso,
Natália Correia revelou a disponibilidade para a ação política. No âmbito da
Aliança Democrática presidida por Francisco Sá Carneiro e através do PRD foi
eleita deputada. Proferiu intervenções memoráveis. A defesa da língua
portuguesa, a valorização do património cultural, a defesa dos direitos
humanos, os direitos das mulheres, o debate sobre o aborto assinalaram, entre
outros temas, a sua passagem pelo hemiciclo de São Bento.
A política ativa não afetou a trajetória literária. Teve um
vínculo ao surrealismo, devido às relações pessoais com Mário Cesariny e
António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas e Manuel de Lima. Integrou as publicações
de Luís Pacheco, o editor do Contraponto, das obras e autores daquele
movimento.
Nunca se submeteu à disciplina de escolas e às cartilhas de
grupos. Quis ser ela própria. Todavia, conciliava à energia e originalidade da
sua criação, a herança poética de Gomes Leal e de Mário Sá Carneiro; o impulso
desencadeado pelas Odes de Álvaro de Campos, e a torrencialidade da Cena
do Ódio de Almada Negreiros. Atingiu a partir dos seus livros Dimensão
Encontrada (1957) e Comunicação (1959) momentos significativos da
poesia portuguesa. Evidenciou-se pelo arrebatamento lírico, a exuberância
barroca, o ímpeto romântico, a truculência satírica que se cruzam com a força
dos símbolos, a profusão das metáforas, a incursão no herético e no erótico que
afronta e estilhaça as convenções existentes.
Num dos seus poemas autorretratou-se:
Hoje quero a violência da dádiva interdita/ sem lírios e sem
lagos/ e sem gesto vago/ desprendido da mão que um sonho agita./ Existe a
seiva. Existe o instinto. E existo eu/ suspensa de mundos cintilantes pelas
veias /metade fêmea, metade mar como as sereias.
Entre os paradigmas intelectuais e éticos também incluía a
figura tutelar e a obra emblemática de Antero Quental, um dos seus patrícios
açorianos de eleição. Era o poeta que lhe desvendava as portas da utopia, e a
sede de infinito.
Procurava, contudo, distanciar-se do Antero noturno, do poeta e
pensador carregado de pessimismo amargo que conduz à negação e à derrota e num
dos seus Sonetos (indisfarçavelmente autobiográficos) confessou: que sempre o
mal pior é ter nascido. Identificava-se com o outro Antero, o luminoso, que
estimulava o exercício da liberdade e da justiça; e descobria: o meio-dia em
vida refervendo, a tarde rumorosa e repousada, o claro sol amigo dos heróis;
(...) tu pensamento não és fogo és luz.
Daí a categórica afirmação: "Não Antero, meu Santo, não me
mato/ antes me zango até ficar num cato/quem me tocar (maldito!) que se
pique." Assim, Natália Correia definia o seu comportamento humano e os
itinerários da sua poesia. Em vez do mal pior da angústia e desespero do Antero
noturno, elegia um bem melhor, o privilégio de ter vivido e continuar a viver
até à dádiva interdita. Para sentir todas as volúpias e todas as audácias. A
vida, em plenitude".
NatáliaCorreia - Vida Com Sentido – por António Valdemar [Jornalista e
investigador], jornal
Público, 23 de Janeiro de2015, p.45 - sublinhados nossos.
J.M.M.
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