“Bento de Jesus Caraça: recusar, resistir, mobilizar” – por António Valdemar, in Público
“A
rejeição do pensamento único, implantado em todos os domínios, é uma das
afirmações da autonomia intelectual e cívica do homem, na plenitude das suas
liberdades e direitos fundamentais. Tanto maior é a força e o significado da
rejeição quanto ela resulta de um imperativo de consciência em luta contra o
fantasma do medo incutido nas homilias dos profetas da desgraça que, em nome da
prudência e estabilidade social, anunciam sempre o pior como se estivéssemos às
portas do fim do mundo.
A
vida de Bento Caraça (1901-1948) indissoluvelmente ligada à sua obra pedagógica
e à sua intervenção cívica, nos anos negros do consulado de Salazar, pode
resumir-se em três verbos: recusar, resistir, mobilizar. Recusar a ditadura,
resistir à prepotência e ao arbítrio. Mobilizar vontades dispersas para
ultrapassar o isolamento e restabelecer um Estado de Direito, com as liberdades
e garantias constitucionais que asseguram as estruturas de um regime
democrático.
Mestre
de matemática e de matemáticos, na Universidade Técnica de Lisboa, atingiu aos
28 anos o cume da carreira. Contudo, não se limitou a ficar, como tantos, na
torre de marfim de uma cátedra. Exerceu influência decisiva na sua geração, na
geração anterior à sua e nas gerações que lhe sucederam. Tomou parte nas lutas
democráticas, sendo vítima de todas as perseguições entre as quais a expulsão
do ensino universitário.
Uma
das obras mais relevantes que o Paísa deve a Bento Caraça foi a criação e direção
da 'Biblioteca Cosmos'. A partir de 1941 a 1948 com a colaboração de figuras de
várias tendências políticas e diferentes opções religiosas, editou mais de uma
centena de pequenos livros que permitiram a divulgação e, por vezes, o
aprofundamento de temas nucleares no âmbito das ciências e técnicas, da
economia e da gestão, das filosofias e religiões, das artes e letras. Este
conjunto tão diversificado - dentro das limitações impostas pela repressão da
Censura e da polícia politica –abrangeu a análise de alguns problemas
contemporâneos.
Tal
como os Cadernos de Iniciação Cultural de Agostinho da Silva, os Cadernos
Inquérito lançados por Eduardo Salgueiro e os opúsculos da Seara Nova dirigidos
por Camara Reys, Antonio Sérgio e Rodrigues Lapa, a Biblioteca Cosmos de
Bento Caraça representou um contributo fundamental para a cultura portuguesa e
a sua aproximação com as solicitações da Europa.
Para
os jovens e os próprios adultos, numa linguagem, clara e acessível, promoveu a
difusão e o conhecimento dos grandes temas nacionais e universais. Atribuía à
cultura a descoberta do homem e do mundo num impulso contínuo de procura da
liberdade. Grande parte da minha formação, que decorreu do final dos anos 40 e
através da década de 50, assentou na Biblioteca Cosmos e também nos
ensinamentos das outras coleções de textos exemplares.
Houve,
nas últimas décadas, novas e irrecusáveis aquisições científicas, filosóficas,
literárias, artísticas e históricas em todas as áreas abrangidas na Biblioteca
Cosmos. Contudo, permanece vivo o sentido de abertura e pluralismo de opinião e
de crítica que inspirou o projeto e se assinala nos volumes que o integram.
A
memória de Bento Caraça vai ser homenageada hoje (dia 19),em Lisboa às 18
horas, na Fundação Mário Soares e presidida por Mário Soares um dos raros
sobreviventes da ação desenvolvida por Bento Caraça, no MUD e outros movimentos
antifascistas.
O
legado de Bento Caraça tem como linha de rumo sempre oportuna e atual: 'Sem
cultura, não pode haver liberdade e, sem liberdade, não pode haver cultura'.
Todavia, a sua conceção é mais abrangente: 'a aquisição da cultura significa
uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no
homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades
potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista: físico, intelectual,
moral e artístico; a conquista da liberdade, a cultura integral do indivíduo'.
Predomina,
contudo, uma norma de conduta, a todos os títulos notável, e que acentuou ainda
maior dimensão humanista no magistério de Bento Caraça. No edifício do
Instituto Superior de Economia e de Gestão (ISEG e antigo Instituto Superior de
Ciências Económicas e Financeiras) onde foi professor catedrático, encontra-se
inscrita uma das afirmações lapidares de Bento Caraça: 'se não receio o erro é
porque estou sempre pronto a corrigi-lo'.
Palavas
que representam uma regra de ouro para transpor o medo que intensifica a inércia,
a indecisão, a falta de transparência, as meias palavras, os jogos do poder, a
opacidade dos negócios, a paz podre.
Perante
os bloqueios às mudanças, a falta de ousadia, as ameaças da corrida acelerada
para o abismo, as advertências de Bento Caraça, deveriam constituir motivo de
reflexão intelectual e cívica. Para estimular coragem e determinação, repelir
certezas absolutas, o prolongamento de impasses e a ausência de alternativas
que promovam reformas urgentes para recuperar o país. Dia a dia cada vez mais
devastado nas áreas da educação, da saúde, da segurança
social, da economia e da cultura. Não esqueçamos, ainda, destruído no
proficiente e indispensável funcionamento da justiça. Em muitos aspetos a
situação é de rutura e de caos”.
Bento de Jesus Caraça: recusar, resistir, mobilizar – por António Valdemar
[Jornalista e investigador, membro da Academia das Ciências], jornal Público, 19 de Fevereiro de 2015, p.47 – com correcções do pp. autor e sublinhados nossos.
J.M.M.
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