“Contos Populares Europeus” –
por Rui Cardoso Martins, in Público 2, 1/02/2015
► “Tsipras, herói-vilão grego, é uma personagem lendária que
simboliza — ou, noutros termos, que ‘syriza’ — a espectacular queda do Olimpo
da deusa Austeridade. Noutras versões, pelo contrário, ele corporiza o
inevitável fracasso das aventuras da musa Utopia, mas deixemo-nos de
enciclopédias: Alexis Tsipras é um tipo que veio ao mundo sem gravata, há 40
anos, em Atenas, para tirar o sono aos Passos Coelhos deste mundo, dos
velhos-novos que são contra histórias de crianças.
Passos Coelho, abusando da sua própria mitologia do 'vamos para
além da troika' disse, criticando o programa do Syriza e o novo Governo
soberano da Grécia, que 'ninguém impõe aos Governos seja o que for; agora não
podem é impor aos outros as suas condições'. Ninguém impõe o quê?... Ninguém
nos impôs nada, afinal? Foi por gosto? ‘Tá boa. Logo a seguir, acrescentou que
o que se está a tentar na Grécia 'é um conto de crianças, não existe'.
Isto é, se não nos entra na cabeça é porque não existe. A
miséria social e económica de um país da União Europeia, todos os dias agravada
por uma dívida pública impossível de pagar — resultado das regras de
austeridade extrema aplicadas em plena recessão — não pode ser substituída por
uma outra maneira de falar às criancinhas.
Parem as máquinas: na Grécia, pararam as privatizações dos
portos do Pireu e de Salónica, o que já de si é de causar comichões a um
liberal, como, no mesmo instante, se cometem enormes atentados à grande causa
europeia, à união de povos amigos: na Saúde, o novo ministro anunciou que serão
prestados cuidados a todos os que estiverem desempregados, que não tenham um
seguro de saúde e que perderam o acesso ao sistema, problema que afecta neste
momento 800 mil pessoas na Grécia. Vão começar a tratar ou, imagine-se, a
tentar curar os velhinhos e as criancinhas doentes, ai meu Deus que estes
extremistas já não querem morrer na rua de tuberculose… E pararam as
privatizações nas companhias eléctricas e vão religar a electricidade aos
pobres (300 mil famílias) que não a podem pagar. E repõem o salário mínimo nuns
indecorosos 751 euros, para que os vadios recomecem a dançar todo o dia e toda
a noite em orgias.
Era uma vez um Alexis Tsipras que tinha mesmo um plano e, como
se não bastasse, cumpria promessas eleitorais. Não podemos confiar neste tipo de
demagogo. Isto é completamente novo na UE.
Mas temos de perguntar. É isto justiça?! Foi para isto que
lutámos toda a nossa vida nas JSDs e CDSs? E como é que agora os gregos vão
pagar os juros que devem ao pessoal? Como é que vamos salvar mais bancos e empresários
e políticos que fizeram fraudes à escala planetária? Os eleitores gregos
mostraram uma grande falta de respeito pelos cidadãos europeus que lhes
emprestaram dinheiro. Querem comer comida cozinhada? Comam iogurtes refrescados
à janela, que é mais saudável e é das poucas coisas que se aproveitam da
Grécia, hoje em dia. Ingratos, malucos, corruptos. Comunistas e marxistas e
extremistas e esquerdistas e idealistas e sodomitas e sabemos lá que mais.
Mais tempo para pagar, renegociação da dívida? É impossível
porque, porque, porque, porque, bom… porque sim. E tudo vamos fazer para provar
que temos razão, é impossível. Ao mesmo tempo, desejamos-lhe o maior dos
sucessos, senhor Tsipras. Mas não nos venhas pedir batatinhas. Se queres falir,
fale.
A não ser que o Tsipras se vire mesmo para a Rússia e a China!
Eh pá. Traidor, traidor. Queres ir ter com os novos amiguinhos? Na verdade, há
muito que a gente sabe que a Grécia não é bem Europa, há grande exagero nessa
coisa de que foram eles a inventar a nossa cultura, as nossas artes, o nosso
pensamento, a própria palavra Europa. Ou a Democracia. Ninguém nos impõe regras
dessas, ninguém nos impõe seja o que for, como já disse.
Alexis Tsipras, com esta complicação extraordinária de chegar ao
poder, veio simplificar as coisas: agora vai-se ver se as cabecinhas que mandam
na Europa são da Terra ou alienígenas do distante planeta Merkel, onde só
chegam os foguetões do Norte.
A Grécia pode acabar por sair. E a UE acabar de vez. Deve haver
um mito grego que se aplica ao caso, mas são todos muito complicados. Medeia
que mata os próprios filhos, Zeus que se transforma em touro para raptar a
princesa Europa, Édipo que dorme com a própria mãe e arranca os olhos, Prometeu
amarrado a um penedo e todos os dias uma águia (alemã?) lhe come o fígado, a
caixa de Pandora com todos os males do mundo (incluindo a deflação da zona
euro, bolas, a austeridade era tão bonita até agora), as aventuras de Ulisses.
Tudo isto não chega. Passos Coelho, afinal, precisa de uma boa
história de crianças. O macaco do rabo cortado que troca de coisas e promessas,
quando a anterior se gasta:
Do rabo fiz navalha
Da navalha fiz sardinha
Da sardinha fiz menina
Da menina fiz camisa
Da camisa fiz viola
Tum tum tum
Que eu vou pra Angola
Tum tum tum
Que eu vou pra Angola
Espera, pra Angola não dá
Que os lucros da gasolina
Já não compram a farinha…
Final feliz: e o rapaz pobre Passos Coelho engoliu um sapo,
casou com a velha muito feia Merkel e foram muito infelizes e não tiveram
filhos”
Contos Populares – por Rui
Cardoso Martins, jornal Público 2 (revista), 1 de
Fevereiro de 2015, p.6 - sublinhados nossos.
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