“O Orpheu e a sua circunstância” – por António Valdemar, in jornal Público
A revista Orpheu abriu novos
caminhos na literatura portuguesa, permitindo questionar o homem e os seus
abismos e levar a limites desconhecidos a invenção da escrita e da palavra.
Para vários capítulos da História, desde a cultura à politica,
1915 representou o ano de tudo o que era previsível e imprevisível: pulsões
revolucionárias e turbulências contrarrevolucionárias, o restabelecimento das
estruturas democráticas da República, o lançamento de uma política atlântica,
de cooperação política e cultural com o Brasil.
Foi, ainda, ano do
aparecimento da revista Orpheu – cujo centenário principia hoje a ser
comemorado em numerosas instituições – que deu lugar à irradiação de uma nova
poesia portuguesa e, ao mesmo tempo, à construção de uma nova língua
portuguesa. Deve-se, fundamentalmente, a Fernando Pessoa, através de Álvaro de
Campos, com a Ode Triunfal e a Ode Marítima. Também se deve a Almada Negreiros,
não com os Frizos, publicados no Orpheu 1 – as garras e as asas de Almada
ganharam folego e amplitude no Manifesto Anti-Dantas, na Cena do Ódio e na Engomadeira.
Todos escritos em 1915.
Os cinco primeiros meses de 1915 podem considerar-se dos mais
terríveis no percurso da Primeira República, tão fértil em incidentes,
conflitos e revoltas que provocaram, em Maio de 1926, o fim do regime, com uma
outra ditadura que só terminará com o 25 de Abril de 1974. Os últimos dias de
Janeiro de 1915 acentuaram o fantasma da I Grande Guerra Mundial (1914-1918),
os primeiros mortos em África (antes da tragédia da Flandres), a divisão de
opiniões acerca da participação no conflito: os que sustentavam a fidelidade à
Grã-Bretanha e as exigências da secular aliança luso-britânica; os que se pronunciavam
a favor da neutralidade; e a erupção de sentimentos germanófilos.
Ainda não se tinham apagado os efeitos das incursões monárquicas
de 1911 e 1912, no Norte do país, nomeadamente em Chaves, persistia o objetivo
da restauração monárquica: intrigas e conspirações para ataques à República, já
reconhecida por todos os Governos do mundo. A arrancada do grupo do
Integralismo Lusitano recuperava o pensamento contrarrevolucionário, em
revistas e jornais próprios e no auge dos conflitos militares e políticos, um
ciclo de conferências na Liga Naval, em Lisboa.
Houve, também, no campo dos republicanos, oposições
dilacerantes. Agravaram-se as querelas que fragmentaram a maçonaria, o Grande
Oriente Lusitano Unido, liderado por Magalhães Lima, dando origem a outra obediência,
o Grémio Luso-Escocês, dirigido pelo general Ferreira de Castro. Saíram do
Grande Oriente lojas de todo o país. A dissidência envolveu muitos civis e
militares dos partidos Evolucionista, de António José de Almeida, Unionista, de
Brito Camacho, e do próprio Partido Democrático, de Afonso Costa.
O Movimento das Espadas, em 20 de Janeiro de 1915, foi o
rastilho das muitas contestações. Manuel de Arriaga chamou o general Pimenta de
Castro para formar um Governo que seria a primeira ditadura na República.
Parlamento encerrado, adiamento de eleições, saneamento de altos quadros da
função pública. Censura nos órgãos de comunicação social.
Entretanto, registou-se, a 14 de Maio, a mais sangrenta das
revoluções da I República, 24 horas de fogo cerrado, mais de 100 mortos e mais
de 1000 feridos em estado grave só em Lisboa. Houve a queda do Governo
presidido por Pimenta de Castro, a renúncia de Arriaga; o regresso de Teófilo
Braga à chefia do Estado, até se efetuarem eleições, para repor a Constituição
de 1911 e consolidar os fundamentos do regime.
À margem desta agitação partidária, que se estendeu de norte a
sul do país, acentuando todas as incógnitas, todos os pressentimentos, todas as
fatalidades, a 25 de Março de 1915, precisamente há 100 anos, concluiu-se na
Tipografia do Comércio, na Rua da Oliveira, ao Carmo, e para ser posto à venda,
em Lisboa, no dia seguinte, a 26 de Março, o Orpheu 1. Também na mesma
tipografia, será composto e impresso, em Junho de 1915, o Orpheu 2. Várias
tendências literárias e estéticas avultam na diversificada e heterogenia
colaboração de Fernando Pessoa (e Álvaro de Campos), Mário de Sá-Carneiro,
Almada Negreiros, Alfredo Guisado, Luís de Montalvor, José Pacheko, Raul Leal,
Armando Côrtes-Rodrigues, (Violante de Cysneiros), Santa-Rita Pintor e, ainda,
de dois poetas brasileiros, Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães. Sem
escrever uma linha, António Ferro foi o editor.
Entre a publicação e o lançamento do Orpheu 1 e do Orpheu 2 ocorreu
uma cisão no grupo que se refletiu nas relações pessoais dos diretores e
colaboradores da revista. Fernando Pessoa, através do heterónimo Álvaro de
Campos, dirigiu uma provocação sibilina a Afonso Costa, que considerava um
feroz e detestável adversário. Afonso Costa estava hospitalizado e era objeto
de contínuas provas de solidariedade. (Júlio Dantas chorou, na sua crónica
semanal, na Ilustração Portuguesa). Afonso Costa saltara de um elétrico, em
andamento, julgando que era uma bomba. Sofreu graves ferimentos. Álvaro de
Campos, em declaração publicada n'A Capital, insinuou com ironia perversa:
“Numa hora tão deliciosamente mecânica, a própria Providência Divina serve-se
dos carros eléctricos para os seus Altos Ensinamentos”.
Numa carta aberta, no jornal O Mundo, Alfredo Guisado e António
Ferro, ambos republicanos, ambos do Partido Democrático de Afonso Costa,
repudiaram o comentário de Álvaro de Campos. Deixaram de colaborar no Orpheu.
Também se demarcou Mário de Sá-Carneiro e, em especial, Almada Negreiros.
Apesar de católico praticante, monárquico assumido e muitos anos aluno interno
do Colégio de Campolide dos Jesuítas, Almada deslocou-se, pessoalmente, a 7 de
Julho de 1915, à redação d’A Capital para esclarecer que a frase de Álvaro de
Campos resultara de “manifesto estado de embriaguez”. Foi a primeira alusão
pública ao alcoolismo de Pessoa, antes da fotografia a “decilitrar” na taberna
de Abel Pereira da Fonseca.
Três nomes do Orpheu vão evidenciar-se e definir o futuro:
Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimo), Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros.
A política democrática e, mais tarde, o anti-salazarismo militante de Alfredo
Guisado afetou-lhe a criação poética. Mesmo assim, Alfredo Guisado, “o mais
injustamente esquecido poeta do Orpheu” no entender de Óscar Lopes e Vitorino
Nemésio (Jornal do Observador), foi, na época, o que teve maior aceitação,
influenciando os primórdios, por exemplo, de Cabral do Nascimento e José Gomes
Ferreira.
Poetas e intelectuais das gerações seguintes acusaram o forte
impacto causado pelo Orpheu, sobretudo por Fernando Pessoa e os seus
heterónimos. E, cada vez mais, traduzido em todo o mundo, o semi-heterónimo
Bernardo Soares do Livro do Desassossego. Ficamos a “ler o que nunca foi
escrito” para mencionar Hofmannsthal, uma frase citada e aplaudida por Walter
Benjamim.
O Orpheu projetou-se no grupo e na geração da Presença, nos Surrealistas,
nos neorrealistas, nos Cadernos de Poesia e em sucessivos outros movimentos
literários até aos nossos dias. Através de, apenas, dois números da revista Orpheu
abriram-se caminhos surpreendentes na literatura portuguesa. O Orpheu permitiu
questionar o homem e os seus abismos. Perder-se e encontrar-se nos labirintos.
Criar novos imaginários. Levar a limites desconhecidos a invenção da escrita e
da palavra”.
O Orpheu e a sua circunstância – por António Valdemar
[Jornalista e investigador, membro da Academia das Ciências], jornal Público, 24de Março de 2015, p.46 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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