sábado, 21 de março de 2015

RECORDAR JOAQUIM NAMORADO


Recordar Joaquim Namorado” – por Mário Vale Lima, in Público

Sou natural de Alter do Chão, terra de cavalos, que é um privilégio num país de burros” - esclarecia Joaquim Namorado quando o julgavam beirão radicado em Coimbra.
A sua biografia confunde-se com a da Vértice - revista do racionalismo moderno, eufemismo de revista de estudos marxistas, que desde o início, em 1942, se tornou um órgão de divulgação do neo-realismo, conceito estético-literário por ele introduzido em Portugal e que desempenhou um papel relevante na resistência intelectual e política à ditadura.
No centenário do seu nascimento decorre, até 07.06.15, no museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira uma exposição evocativa deste professor de matemática, poeta e militante comunista que, citando o precioso catálogo, abraçou cedo “a grande aventura humana dos tempos modernos, o combate pelo comunismo (…)” aderindo ao PCP em 1935 e cuja visita é imperdível para quem viveu na ancestral cidade universitária as últimas décadas anteriores à democracia onde ele era a figura intelectual tutelar.

Foi ainda editado um opúsculo da autoria de Jaime Ferreira, amigo leal até à sua morte, em 1984, com o inventivo título O herói no “Neo-realismo mágico”.
 
 
A exposição inicia-se com uma foto que cria a subliminal ilusão de o vermos naquela “Coimbra irrepetível (…) onde a Praça da República era, nos anos sessenta e nos começos da década seguinte, o local mais importante do mundo (…), rivalizava com a Vermelha, a de S. Pedro, a da Concorde (…) e nela a figura de Namorado, constantemente vigiado pela PIDE, marcou de forma indelével, sucessivas gerações de rebeldia”. O opúsculo, donde cito, lembra-me no rol dos membros da redacção da Vértice e suas reuniões infalivelmente semanais e o usufruto da contínua recepção de livros e dois semanários sonegadas pela censura – Cuadernos para el Diálogo e Triunfo – arautos dos ideais democráticos.
A guerra civil de Espanha “(…) aqui ao lado, vivida dia-a-dia, e hora-a-hora (…). As notícias dos fuzilamentos, as aldeias destruídas (…). E o “non pasarán! (…)” foi um marco histórico caro a Namorado. Nesse monstruoso conflito bélico, que segundo José Gomes Ferreiraentrou em forma de tempestade pelas casas dos poetas dentro” e onde combateram mais de mil portugueses em ambos os lados da contenda, Salazar teve um papel conspirador decisivo, pois aí se jogou a sobrevivência do Estado Novo. Essa epopeia trágica deixou-nos marcas tão duradoiras que, ainda nos anos 70, Guernika era uma bandeira antifascista e “Ay Carmela!” um hino de nostalgia insubmissa cantado nas manifestações
São vários os textos de Namorado sobre o tema, dentre os quais se releva Vida e Obra de Federico García Lorca e o prefácio à antologia A Guerra Civil de Espanha na Poesia Portuguesa.

Em 1938 conheceu a primeira das prisões. Em 1949/50, fugiu a uma vaga repressiva da PIDE, e teve em Perelhal (Barcelos) um dos seus refúgios, à guarda do Padre Sá Pereira, monárquico e combatente da Monarquia do Norte que, tornado entretanto Presidente da Câmara de Esposende, o disfarçou de “fiscal de obras”. Nessa página conhecida de poucos, embora anticlerical, lembrava, comovido, aquele padre.

Percorre-se a exposição ao som das Heróicas de Lopes Graça até a esta citação de Namorado em 1982: “O estalinismo só é um problema para os anti-comunistas”. Mário Dionísio, “seu companheiro desde o início do mundo”, não cria nisso. O Joaquim era um fingidor. Mas ao contrário de Neruda (“…a terra encheu-se dos teus castigos/ e em cada jardim havia um enforcado…”), nunca criticou Estaline mantendo-se, sem tergiversar, fiel à orientação estalinista imputada ao PCP. A exposição não dá pistas do porquê, então, deste intelectual de capote alentejano, ímpar bagagem de conhecimento e décadas de combate, nunca ter tido lugar relevante no partido.


Continuava, após o 25 de Abril, tonitruante à mesa do Tropical ameaçando com pragas, purgas e fuzilamentos.

Até que em 1981, numa noite de inverno, a redacção da Vértice o conduziu ao afastamento da direcção que lhe pertenceu desde muitos anos antes e onde, diria Mário Dionísio, “queimou a vida quase toda”.

Quer a exposição quer o opúsculo omitem essas horas do “herói do neo-realismo mágico” que se adivinham lúgubres como as de Aureliano Buendia em frente ao pelotão de fuzilamento recordando a tarde remota em que seu pai o levou a conhecer o gelo.

Alguns enigmas da história do poeta de Incomodidade terão ido no caixão coberto com a bandeira do partido"

Recordar Joaquim Namorado – por Mário Vale Lima [médico], jornal Público, 21 de Março de2015, p.53 – com sublinhados nossos.
 
 
J.M.M.

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