“Recordar Joaquim Namorado” –
por Mário Vale Lima, in Público
“Sou
natural de Alter do Chão, terra de cavalos, que é um privilégio num país de
burros” - esclarecia Joaquim Namorado quando o julgavam beirão radicado em
Coimbra.
A
sua biografia confunde-se com a da Vértice - revista do racionalismo moderno,
eufemismo de revista de estudos marxistas, que desde o início, em 1942, se
tornou um órgão de divulgação do neo-realismo, conceito estético-literário por
ele introduzido em Portugal e que desempenhou um papel relevante na resistência
intelectual e política à ditadura.
No
centenário do seu nascimento decorre, até 07.06.15, no museu do Neo-Realismo em
Vila Franca de Xira uma exposição evocativa deste professor de matemática,
poeta e militante comunista que, citando o precioso catálogo, abraçou cedo “a
grande aventura humana dos tempos modernos, o combate pelo comunismo (…)”
aderindo ao PCP em 1935 e cuja visita é imperdível para quem viveu na ancestral
cidade universitária as últimas décadas anteriores à democracia onde ele era a
figura intelectual tutelar.
Foi
ainda editado um opúsculo da autoria de Jaime Ferreira, amigo leal até à sua
morte, em 1984, com o inventivo título O herói no “Neo-realismo mágico”.
A
exposição inicia-se com uma foto que cria a subliminal ilusão de o vermos
naquela “Coimbra irrepetível (…) onde a Praça da República era, nos anos
sessenta e nos começos da década seguinte, o local mais importante do mundo
(…), rivalizava com a Vermelha, a de S. Pedro, a da Concorde (…) e nela a
figura de Namorado, constantemente vigiado pela PIDE, marcou de forma
indelével, sucessivas gerações de rebeldia”. O opúsculo, donde cito, lembra-me
no rol dos membros da redacção da Vértice e suas reuniões infalivelmente
semanais e o usufruto da contínua recepção de livros e dois semanários
sonegadas pela censura – Cuadernos para el Diálogo e Triunfo –
arautos dos ideais democráticos.
A
guerra civil de Espanha “(…) aqui ao lado, vivida dia-a-dia, e hora-a-hora (…).
As notícias dos fuzilamentos, as aldeias destruídas (…). E o “non pasarán!
(…)” foi um marco histórico caro a Namorado. Nesse monstruoso conflito bélico,
que segundo José Gomes Ferreira “entrou em forma de tempestade pelas casas dos
poetas dentro” e onde combateram mais de mil portugueses em ambos os lados da
contenda, Salazar teve um papel conspirador decisivo, pois aí se jogou a
sobrevivência do Estado Novo. Essa epopeia trágica deixou-nos marcas tão
duradoiras que, ainda nos anos 70, Guernika era uma bandeira
antifascista e “Ay Carmela!” um hino de nostalgia insubmissa cantado nas
manifestações
São vários os textos de Namorado sobre o tema, dentre os quais
se releva Vida e Obra de Federico García Lorca e o prefácio à antologia A
Guerra Civil de Espanha na Poesia Portuguesa.
Em 1938 conheceu a primeira das prisões. Em 1949/50, fugiu a uma
vaga repressiva da PIDE, e teve em Perelhal (Barcelos) um dos seus refúgios, à
guarda do Padre Sá Pereira, monárquico e combatente da Monarquia do Norte que,
tornado entretanto Presidente da Câmara de Esposende, o disfarçou de “fiscal de
obras”. Nessa página conhecida de poucos, embora anticlerical, lembrava,
comovido, aquele padre.
Percorre-se a exposição ao som das Heróicas de Lopes
Graça até a esta citação de Namorado em 1982: “O estalinismo só é um problema
para os anti-comunistas”. Mário Dionísio, “seu companheiro desde o início do
mundo”, não cria nisso. O Joaquim era um fingidor. Mas ao contrário de Neruda
(“…a terra encheu-se dos teus castigos/ e em cada jardim havia um enforcado…”),
nunca criticou Estaline mantendo-se, sem tergiversar, fiel à orientação
estalinista imputada ao PCP. A exposição não dá pistas do porquê, então, deste
intelectual de capote alentejano, ímpar bagagem de conhecimento e décadas de
combate, nunca ter tido lugar relevante no partido.
Continuava, após o 25 de Abril, tonitruante à mesa do Tropical
ameaçando com pragas, purgas e fuzilamentos.
Até que em 1981, numa noite de inverno, a redacção da Vértice o
conduziu ao afastamento da direcção que lhe pertenceu desde muitos anos antes e
onde, diria Mário Dionísio, “queimou a vida quase toda”.
Quer a exposição quer o opúsculo omitem essas horas do “herói do
neo-realismo mágico” que se adivinham lúgubres como as de Aureliano Buendia em
frente ao pelotão de fuzilamento recordando a tarde remota em que seu pai o
levou a conhecer o gelo.
Alguns enigmas da história do poeta de Incomodidade terão
ido no caixão coberto com a bandeira do partido"
Recordar Joaquim Namorado – por Mário Vale Lima [médico], jornal Público, 21 de Março de2015, p.53 – com sublinhados nossos.
FOTOS: via "Joaquim Namorado, Coimbrão, Poeta, Resistente e Democrata" Facebook Grupo
J.M.M.
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