“Maio de 65, o encerramento da Sociedade de Escritores” – por António Valdemar, in jornal Público
Na última década de salazarismo, Maio de 65 ficou assinalado por
um dos maiores atentados à cultura e à liberdade nas suas várias dimensões: o
encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores. O pretexto legal foi a
atribuição do Grande Prémio da Novela a Luandino Vieira, autor da obra Luuanda.
O ministro Inocêncio Galvão Teles, no despacho que exarou, classificava
Luandino Vieira “um individuo condenado criminalmente a 14 anos de prisão maior
por actividades de terrorismo na província de Angola”.
Luandino Vieira encontrava-se, com efeito, no Tarrafal, a
cumprir 14 anos de prisão. Era um dos implicados no “processo dos 50” julgado
pelo Tribunal Territorial de Angola. Provou-se, contudo, que não fabricava
bombas, nem colocava explosivos para concretizar ações armadas. Limitara-se a
participar com outros intelectuais e políticos na elaboração e difusão de
documentos para as bases futuras de uma “nova Angola”.
A sentença com base nos fatos apurados não mencionava “actividades
de terrorismo”. Mas em telegramas das agências ANI e
Lusitânia e textos de opinião do Diário de Noticias, do Diário da Manha, de A
Voz e outros órgãos ligados ao regime passou Luandino Vieira a ser denominado terrorista
e, como tal, votado ao ostracismo e à execração pública. Era – lhe interdito receber
o grande Premio da Novela da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Uma das muitas notícias que o Diário de Noticias logo publicou
intitulava-se “Estranheza em Angola”, pela atribuição de Prémio. Seria
possível? Um dos principais jornais diários de Luanda- Visados pela Censura
como, aliás, todos os outros - o ABC fizera elogiosas referências à obra. O
mesmo livro, também em Luanda, tivera o Prémio Mota Veiga, por se tratar de um
contributo “excelente, (…) «uma nova corrente literária, revelando notável
poder de criação.” O júri em Luanda integrava personalidades idóneas que
representavam outras tantas instituições conceituadas. A atribuição do Prémio,
em Lisboa, pela Sociedade Portuguesa de Escritores era susceptível de causar “estranheza”
em Angola?
Contudo, a partir de 21 de Maio de 1965, data da decisão do ministro
Galvão Teles, o Diário de Noticias e outros jornais, com o reforço contínuo das
rádios e da Televisão, desencadearam, todos os dias, um «movimento de
indignação» para que se fizesse sentir o repúdio ao Prémio, ao júri e à
Sociedade Portuguesa de Escritores. Ficou expresso em textos individuais ou em
documentos colectivos de protesto. A Gulbenkian, em comunicado subscrito por
Azevedo Perdigão, retirou os patrocínios financeiros para os Prémios anuais da
Sociedade Portuguesa de Escritores. Mas, também se verificou o contrário.
Radicalizaram – se os extremos.´
FOTO da 1ª DIRECÇÃO DA SPE [tomada
de posse na Casa do Alentejo, Julho de 1956]: Na 1ª fila, da esquerda para a direita:
Aquilino Ribeiro, Manuela de Azevedo, João de Barros, General Luís Augusto Ferreira
Martins, Adelaide Felix, Assis Esperança e Leão Penedo. Na 2ª fila: Jaime Lopes Dias, Alexandre Cabral, Cruz
Filipe*, Alves Redol, Adão e Silva e Mário Dionísio* (encoberto por Assis Esperança)
* não fazendo parte dos Corpos Gerentes, assistiram ao acto de Posse – via “Breve
Memorial da SPE e da APE …”, 1983, p. 2
A sede da Sociedade Portuguesa de Autores, na rua Escola
Politécnico, foi assaltada e destruída. Recordo-me, como se fosse hoje. Fui
incumbido, no DN, de fazer a reportagem. Apesar das cautelas exigidas e em
fecho da edição, o texto foi retalhado pela censura. Mas saiu nas “últimas notícias”.
Restou apenas o retrato a óleo de Aquilino Ribeiro, da autoria do pintor Rui
Filipe, realizado para a Sociedade Portuguesa de Escritores e para homenagear o
fundador e primeiro presidente.
O assalto e a destruição resultaram da intervenção de elementos do
Jovem Portugal e dos Centuriões com a cobertura da Legião Portuguesa e da PIDE.
Houve a cumplicidade de escritores e jornalistas afectos ao regime. Consta de
documentos que permanecem na Torre do Tombo, alguns transcritos no Livro Negro
do Fascismo. Vem pormenorizada por Riccardo Marchi em Império, Nação, Revolução–as direitas radicais no fim do Estado Novo, 1959- 1974.
Entretanto, a PIDE prendia membros do júri que haviam atribuído
o Prémio, mesmo os que votaram contra ou não votaram: João Gaspar Simões,
Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, Manuel da Fonseca, Alexandra Pinheiro
Torres. Tive oportunidade de recolher depoimentos, de alguns deles, para um
inquérito Diário de Notícias (19 de Maio de 1985) e que revela parte do que se
passou nos bastidores.
Falta, todavia, um rigoroso e exaustivo levantamento da imprensa
da época, incluindo a de Angola e das posições assumidas pelas instituições
culturais. Juntamente com a documentação policial e política na Torre do Tombo,
permitirá avaliar clivagens muito profundas na sociedade portuguesa, em
especial nos círculos intelectuais e que perduram até depois do 25 de Abril.
Entre todos os acontecimentos, o que teve mais graves
consequências, ocorreu com o Jornal da Fundão. O texto assinado por Alexandre
Pinheiro Torres, membro do júri, (apesar de Visado pela Censura) provocou a
suspensão do jornal por seis meses, a uma multa pesada e um regime especial de
censura: o envio dos textos, das páginas de composição, títulos e ilustrações para
a direcção da censura, em Lisboa, em vez de mandar, como era costume, para a
delegação Castelo Branco. Será um dos temas das comemorações do centenário do
nascimento de António Paulouro fundador e director do Jornal do Fundão. Também
será, porventura, um dos capítulos da obra de investigação de Fernando Paulouro
Neves acerca da História da Censura (1926-1974).
A reconstituição de alguns aspectos deste processo, de Maio de
65, do encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, (objecto de notável
contestação jurídica de Eduardo Figueiredo, grande advogado e resistente à
ditadura), não pode deixar de ser assinalado, 50 anos depois, quando, noutra
conjuntura, se deparam múltiplos factores de crise que, em qualquer momento,
pode atingir o direito de reunião e de associação, mediante as conveniências,
os interesses e o arbítrio do poder politico”.
Maio de 65, o encerramento da Sociedade de Escritores – por António
Valdemar [Jornalista e investigador, membro da Classe de Letras da Academia das
Ciências], jornal Público, 20 de Maio de 2015, p.47 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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