LIVRO: Almada. Os Painéis, a Geometria e Tudo. As entrevistas com António Valdemar;
AUTOR: António Valdemar;
EDIÇÃO: Assírio e Alvim, 2015, p. 223.
LANÇAMENTO:
DIA: 7 de Outubro (18,30 horas);
LUGAR: Grémio Literário (Rua Ivens, 37, Lisboa);
ORADOR: Eduardo Lourenço | presença de António Valdemar
► É preciso que o leitor saiba que, ao escolher este livro, acertou em cheio. Este é um livro que desfaz a nossa falta dele. É um livro que torna próximo, reunido e nítido o que até agora estava distante, disperso e desfocado. É um livro que, 55 anos depois, restitui à voz de Almada o seu som escrito mais sonoro, mais sucinto, mais sucessivo («alto e bom som», gostava ele de dizer). É um livro atravessado por uma estrada que passa em todos os lugares onde aquele para quem a arte era um todo e o artista um tudo firmou a sua soberania, a sua sabedoria, o seu saque. É um livro de palavras que procuram uma verdade que não é o contrário de uma mentira, mas o oposto de uma outra verdade. É um livro por onde o tempo corre para acompanhar a sua fuga: garrafa arrebatada ao mar fundo do passado, lança atirada à terra seca do presente, nave apontada ao céu alto do futuro («Até hoje fui sempre futuro», Almada). É um livro (documento, depoimento e testemunho) que fala da geometria que fala - que fala da geometria que «assim fala».
É um livro, mas o que nele se diz «não foi encontrado em livros
primeiro, mas n'eles assegurado depois» (Almada). É um livro a mostrar-nos que «o
novo existe e que pode mesmo dizer-se que é precisamente tudo o que há de mais
antigo» (Delacroix, citado por Almada). É um livro e, com ele, sabemos que «o
Futuro é tão antigo como o Passado. E ao caminharmos para o Futuro é o Passado
que conquistamos» (António Maria Lisboa).
É este um livro feito a quatro mãos: as de um escritor-artista,
sem o qual a cultura portuguesa seria outra; e as de um
jornalista-investigador, sem o qual as entrevistas - e este livro que agora,
passados mais de meio século, as restitui - seriam o não serem […]
Abre-se este livro e lemos o ensaio-prefácio, escrito agora, e em
que António Valdemar nos fala, com minúcia e memória, de Almada Negreiros e de
como foi feita a caça ao tesouro de que estas entrevistas tratam. Com
conhecimento, fala-nos da vida de Almada e dos ventos que a moveram. Com
inspiração, fala-nos dos Almadas que o Almada foi sendo para ser o Almada que
era («A mim já me chamaram pau de dois bicos, quando, na verdade, eu tenho
tantos bicos quantos os necessários para deixar de ser pau e ser eu!», Almada).
Com deleite, fala-nos de obsessões e de polémicas. Com persistência, fala-nos
daquela geometria em que Almada encontrou uma egometria. Pense-se o que se
pensar desta geometria e desta egometria, a verdade é que elas deram origem a
um mundo que se nos tornou magnificamente visível em tudo o que Almada com ele
fez […]
O ensaio-prefácio faz-nos entrar, de olhos abertos e ouvidos
despertos, na conversa entre os dois autores, o entrevistador e o seu
entrevistado, o mestre atencioso e o discípulo atento. Esta conversa passa de um
para o outro como uma corrente elétrica intensa passa de um pólo a outro polo:
diálogo atravessado por monólogos; monólogo atravessado por diálogos;
monodiálogo e diamonólogo; jogo de fórmulas e de formas; cinemática de forças e
de figuras; mapa de segredos súbitos e de sentidos subtis. Aqui, Almada é o D.
Sebastião que se perde num nevoeiro geométrico para nele se voltar a achar,
regressando à Pátria mais passada e mais futura, mais encoberta e mais
desejada, mais desaparecida e mais encontrada.
Agora, lembro. Era verão, os dias estavam claros e as noites
quentes e demoradas. Nós vínhamos a pé de Algés ou de Belém, onde tantas vezes
jantávamos com outros amigos, até ao Cais do Sodré ou à Praça do Comércio. Andávamos
e conversávamos, conversávamos e andávamos. Por cada passo, dez palavras; por
cada palavra, dez silêncios. Vejam bem o tudo que dizíamos e o nada que calávamos
naqueles dez quilómetros […]
Agora, continuo a lembrar. Havia horas dessas noites, assim vagarosas
e abafadas, em que o António Valdemar evocava o Almada, falava do Almada, citava
o Almada, contava do Almada, figurava o Almada, representava o Almada. A noite
subia e, sob o desenho distante dos astros na escuridão seca do céu, o meu
amigo conseguia fazer com que o Almada aparecesse ali, entre nós, vivo […]
Agora, olho a fotografia da capa do livro. Aconteceu que, de
entre as muitas fotografias do espólio de Almada, esta saltou de lá, ainda há pouco
tempo, por milagre ou prodígio. Foi como se quisesse vir ao nosso encontro,
como se desejasse estar na capa deste livro. E assim se lhe faz a vontade!
A fotografia dá-nos a ver dois homens que passeiam no Chiado. Nos
seus rostos, há uma alegria comum, que não se perde nem se parte. Elegantes e
com tempo para o serem, o homem já velho conversa com o homem ainda novo.
Assim, anos mais tarde, um homem ainda novo, a quem chamo eu, conversará com um
homem mais velho, a quem chamo amigo.
No Chiado, enquanto caminhava ao lado do Valdemar, o Almada falava
do Almada. No caminho que, anos depois, eu e o meu amigo fazíamos de Algés à Baixa,
era do Almada ainda que falávamos. Este livro é, de Almada e de nós a falar dele,
uma memória que não esquece. Por isso, o reconheço - assim Almada Negreiros
reconhecia os Painéis das Janelas Verdes como se os tivesse visto pintar. Mais
e melhor: reconhecia-os como se ele, muito antes dele, os tivesse pintado.
[José Manuel dos Santos, “O Fausto de Almada ou a Caça ao Tesouro”,
in prefácio, p. 11-19]
António Valdemar
J.M.M.
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