“Sampaio Bruno, o Portuense Universal” – por António Valdemar, in jornal Público
Centenário da morte do grande
erudito e pensador deverá ter comemorações nacionais
Entre as efemérides a celebrar, ainda em 2015, e numa dimensão
nacional, além de Silva Cordeiro (20-6-1859/2-1-1915), o professor que mais
interessou Fernando Pessoa, na passagem episódica pelo Curso Superior de
Letras, deparam-se os centenários da morte de Ramalho Ortigão
(24-19-1836/27-9-1915) e da morte de Sampaio Bruno (30-11-1857/11-11-1915).
Ambos são naturais do Porto e ambos ligados à história da cidade.
Não possui qualquer fundamento a informação da Grande
Enciclopédia Portuguesa Brasileira ao salientar que Sampaio Bruno
“formou-se em Medicina em 1876 e passou ainda a frequentar a Antiga Escola
Politécnica do Lisboa, mas em 1878 teve de abandonar os estudos por falta de
saúde” (vol. 26 – pág. 891). Nos estudos biográficos e críticos de Joel Serrão
verifica-se que Sampaio Bruno frequentara e não concluíra a Antiga Escola
Politécnica do Porto. Não possuía qualquer curso. Tal como Herculano, Camilo,
Oliveira Martins, Aquilino, Cesário Verde, Fernando Pessoa e Almada Negreiros.
Mais próximo de nós: Sofia, Natália, Agustina, Saramago, Mário Cesariny e
Eugénio de Andrade.
Leitor compulsivo, erudito multifacetado, Sampaio Bruno foi um
trabalhador incansável. Umas vezes a esmiuçar a grande e a pequena história do
passado remoto outras a fazer a análise crítica ou o enquadramento da realidade
imediata. Outras, ainda, a dissertar em torno de questões esotéricas da
antiguidade longínqua ou do mito sebastianista.
Bruno tem uma intervenção torrencial na imprensa, quer por
solicitação política e partidária, quer – ele o confessa – como trabalho
remunerado, para garantir a subsistência. Sampaio Bruno pretendia ocupar a
direção da Biblioteca do Porto. O lugar encontrava-se vago, pela morte do
diretor e fundador da Biblioteca Eduardo Allen (1824-1899), sócio da Academia
das Ciências, licenciado em Direito por Coimbra.
O acesso, contudo, permanecia-lhe vedado, não por motivos
políticos, pela filiação republicana e intervenção no 31 de Janeiro. Era
exigido um curso universitário. Sampaio Bruno debatia-se com a falta de
habilitações para ocupar o cargo. Procurou ser eleito sócio da Academia das
Ciências de Lisboa. O seu mérito era amplamente reconhecido. Tinha admiradores,
amigos pessoais, conterrâneos e correligionários políticos em ambas as classes
da Academia das Ciências de Lisboa. Sampaio Bruno admitiu que tal distinção
ultrapassaria os obstáculos e as exigências institucionais.
Contudo, o tempo de decisão das Academias não se compadece, nem
coincide com o ritmo das tramitações burocráticas. Ignoro que diligências se
fizeram. Se houve formalização da proposta; se chegou a ser apreciada e
submetida à votação a candidatura de Bruno.
De momento, não é possível realizar qualquer investigação no
arquivo documental da Academia das Ciências de Lisboa. Em face de um pedido de
esclarecimento, a fim de aclarar, com a possível urgência, esta situação
relativa a Sampaio Bruno, recebi a informação de que todo o acervo terá sido,
recentemente, transferido e por ordem superior, para outras dependências das
instalações do edifício. Não se podem consultar os processos de sócios efetivos
e correspondentes nacionais e estrangeiros, com os respectivos elementos
anexados e que se revestem da maior importância biográfica e bibliográfica. Nem
muitos livros de atas. Mesmo recentes.
Sei, no entanto, que o cargo de diretor da Biblioteca do Porto
foi ocupado por António Rocha Peixoto (1868-1909) licenciado pela Escola
Politécnica do Porto, arqueólogo, etnógrafo e historiador. Passados alguns
anos, Sampaio Bruno ingressava na Academia das Ciências de Portugal, fundada em
Lisboa a 18 de Abril de 1907, que funcionou pouco mais de uma década, se
estendeu a todo o Pais e chegou inclusive à Galiza.
Esta Academia - que resultou de uma cisão polémica com a
Academia das Ciências de Lisboa - incluiu, logo de início, numerosos sócios de
prestígio alguns deles da Academia das Ciências de Lisboa como Teófilo (um dos
organizadores), Conde de Sabugosa, Alfredo da Cunha, Teixeira de Queiroz, Sousa
Viterbo, Consiglieri Pedroso, Gonçalves Viana. Entre os propostos destaca-se
Sampaio Bruno. A Academia das Ciências de Portugal teve o mérito de corrigir
algumas injustiças, até que, de condescendência em condescendência, abriu
indiscriminadamente a porta a carreiristas intelectuais e oportunistas
políticos.
Só em 1909 Sampaio Bruno conseguiu, finalmente, com a morte de
Rocha Peixoto ser nomeado bibliotecário e a seguir diretor da Biblioteca
Municipal do Porto. A sua obra reflecte o Porto cívico e cultural de outros
tempos e do seu tempo: o Porto de Antero de Quental, a presidir à Liga
Patriótica do Norte. O Porto literário de Eça de Queiroz, à frente da Revista
Portugal. O Porto de Camilo (mas a caminho dos editores e oftalmologistas).
O Porto dos primórdios literários de António Nobre e Raul Brandão e de Manuel
Teixeira Gomes a tentar fazer o curso de Medicina. O Porto do pintor Marques de
Oliveira (mestre de Henrique Pousão), que retratou o mar e o areal da Póvoa de
Varzim. O Porto de Soares dos Reis que, de insatisfação a insatisfação, e
sufocado por intrigas e invejas, num desesperado encontro com a morte, resvalou
nas garras do suicídio. O Porto medularmente republicano de Rodrigues de
Freitas, de Basílio Teles, de Aurélio Paz dos Reis (o criador do cinema
português) e de Sampaio Bruno. Reflete, ainda, o Porto, orgulhosamente,
concentrado nas suas fronteiras territoriais, entregue à azáfama comercial,
absorvido com a roda–viva industrial e, simultaneamente, recetivo às
solicitações da cultura e ao sentido da universalidade.
Ainda Sampaio Bruno viveu seis anos enraizado na Biblioteca do
Porto. A descobrir e editar velhos manuscritos. Sempre a trabalhar. A escrever
n’A Águia de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra. A receber uma
carta de Fernando Pessoa para colaborar no Orpheu.
Sampaio Bruno, o portuense universal – por António Valdemar
[Jornalista e investigador, membro da Academia das Ciências], jornal Público, 2
de Novembro de 2015, p.46 – com sublinhados nossos.
António Valdemar
J.M.M.
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