domingo, 5 de junho de 2016

UMA HISTÓRIA MAL CONTADA OU A TEORIA DO APAGÃO - PARTE I


 

Uma história mal contada ou a teoria do apagão” – por Diogo Ramada Curto, in Público

[Uma leitura da biografia de António Barreto atenta aos pontos de contacto com uma série de figuras criadas por Eça pode ser discutível, mas tem a vantagem de alertar para a necessidade de qualquer autor de uma narrativa conseguir controlar melhor os vários sentidos da sua prosa. O inventário das banalidades que resulta da leitura desta obra é extenso. Melhor seria se a autora tivesse cortado aquilo que vem à baila numa conversa oral, mas que se afigura pouco relevante numa narrativa biográfica]

A biografia de António Barreto (AB) escrita por Maria de Fátima Bonifácio (MFB), uma experiente historiadora de ofício, ocupa 527 páginas, divididas em 24 capítulos, que correspondem a duas partes distintas. Na primeira, o biografado é visto como actor político, narrando-se o seu meio familiar, educação com entrada na Universidade de Direito de Coimbra, fuga à tropa com exílio na Suíça, regresso a Portugal em 1974, relações com o PS e Mário Soares, passagem pelo Ministério da Agricultura no I Governo Constitucional (1976-78), retirada da política activa aos 49 anos e actividade de comentador político na televisão e nos jornais, etc. A segunda parte é dedicada ao exame das principais ideias daquele que se toma por objecto, com base numa leitura das suas publicações mais relevantes. No seu conjunto, o género biográfico é aquele que corresponde melhor ao projecto de uma história narrativa, tal como tem sido defendido e praticado pela autora em vários livros sobre políticos do século XIX: Costa Cabral, Duque de Palmela e Rodrigo da Fonseca Magalhães.

Na base deste trabalho estão 17 entrevistas, realizadas entre 2013 e 2015, que irão ser depositadas para consulta na instituição pública de investigação em que ambos, biógrafa e biografado, trabalharam durante décadas. As fontes de MFB são também constituídas pelos livros, artigos e discursos da autoria de AB. Assinalável é o cuidado com que MFB distingue – através de um sistema de aspas – a voz do biografado e as suas próprias opiniões. Uma distinção importante, uma vez que é assumida a proximidade, em termos de relação de amizade, de dois colegas de investigação e de uma superlativa admiração que MFB nutre por AB.
 
Mais difícil de entender é o facto de esta biografia, nas palavras da sua autora, surgir como “livro não autorizado”, com base no argumento de que AB se limitou a conceder as entrevistas e, depois, a corrigir alguns factos ou datas. Ou seja, AB não interveio, nem condicionou a autora. Ora, é justamente por se apresentar com o rótulo de biografia “não autorizada” que este livro coloca, desde logo, muitas reservas. Para merecer tal estatuto, deviam ter sido consultadas outras fontes e recolhidos mais depoimentos, pelo menos os daqueles que se cruzaram ao longo da vida com AB e com ele conviveram. A prova, o recurso ao contraditório, o cuidado para não repetir e sublinhar, por via analítica, as auto-representações do biografado são instrumentos de que nenhum biógrafo pode prescindir, mesmo quando reivindica para si, repetidas vezes, a liberdade de narrar. Tivesse Barreto escrito as suas memórias (por exemplo, sob a forma de entrevista ou de autobiografia tout court), já o estatuto deste livro não levantaria esse tipo de dúvidas. Mas, nesse caso, diga-se, teria de concorrer com as autobiografias de Rosado Fernandes e João Freire, escritas num estilo claro e enxuto, difícil de ultrapassar, sobretudo a primeira mais irónica, sendo a segunda de grande simplicidade, transparência e riqueza de informação.
 
Ainda a propósito do cruzamento de fontes, o leitor fica sem perceber, na crucial passagem de Barreto pelo Ministério da Agricultura – “a grande oportunidade da minha vida política”, segundo AB (p. 188) – , quais eram os pontos de vista dos seus colaboradores mais próximos. Nem o nome do seu Chefe de Gabinete é referido, tão-pouco o seu testemunho mencionado. A narrativa acerca da Lei Barreto é reduzida a um quadro onde AB se confrontou com as posições do antigo ministro da mesma pasta, Oliveira Baptista, e na sua esteira com os fretes feitos por Lopes Cardoso ao PC; mais tarde, com a saída do governo de AB, a mesma lei foi denunciada por Mário Soares, que a considerou mal feita. De resto, a sua formulação surge no livro completamente desinserida de um quadro onde muitos agrónomos e especialistas em economia rural tinham opinião – Henrique de Barros, Castro Caldas, Afonso de Barros, Francisco Avillez, Gomes da Silva, Sevinate Pinto, etc. Em lugar de descrever o contexto e procurar reconstitui-lo através de diferentes testemunhos, a autora limita-se a uma banal e genérica troca de opiniões entre AB e MFB sobre os limites da decisão política: “o poder de transformação da sociedade é muito reduzido”, sustenta o primeiro, acabando a autora por responder com a pergunta, mais ou menos retórica, “que tipo de líder se poderá elevar acima delas [limitações] e visionar a transformação da sociedade?” (p. 189).
 
Aliás, o inventário das banalidades que resulta da leitura desta obra é extenso. Melhor seria se a autora tivesse cortado aquilo que vem à baila numa conversa oral, mas que se afigura pouco relevante numa narrativa biográfica. Quatro exemplos, de uma vasta série. Primeiro, seria dispensável a referência aos pintores italianos do Renascimento, vistos em reproduções na infância e que, ainda hoje, motivam o gosto pelas visitas de AB a “cidades estrangeiras para ver certos quadros” (p. 29). É que também o polaco G. Cornuski, professor e crítico que escrevia na Revista Suíça, com o qual Fradique Mendes se correspondia, se deixava esmagar pelo sublime frente às telas de Ticiano (que MFB, na sua vasta cultura geral, cita com apelido e tudo – Ticiano Vecellio).
 
Depois, sem sair das comparações com esse mundo tão irónico quanto sardónico de Eça, talvez valesse a pena repensar uma das tensões que atravessa este livro: a preocupação com a nação, com Portugal e os seus problemas, em contraste com a sua ‘irrelevância’ ou pequenez quando visto a partir do estrangeiro (pp. 38, 107, 117). Sobre esta questão, há uma passagem que merece destaque, quando MFB diz que AB ‘pensou em naturalizar-se suíço, para transformar o país de exílio numa segunda pátria’ (p. 118). É que também a Fradique Mendes ocorreu o mesmo pensamento, quando sentiu vontade ‘em se nacionalizar nas terras alheias’.
Uma terceira banalidade surge quando MFB regista que, desde o 28 de Setembro de 1974, se tornou “cristalino para António Barreto‘ que o PC 'quer tomar conta da situação’; que o ‘PS, ou uma parte do PS, vai consentir’” (p. 123). Terá AB sido mesmo o único a constatá-lo? Creio que não, pois essa foi uma ideia partilhada por muitos. E como pode o papel da extrema-esquerda ficar de fora da referida visão cristalina? Não será isso o resultado de um anticomunismo feroz apenas preocupado com o PC e que, por isso mesmo, não presta atenção às outras esquerdas mais radicais?
 
Por último, não menos banal é apresentar o estatuto académico de AB como uma espécie de “apêndice curricular” (p. 211). Ao trivializar um dos proventos de AB – que de tão banal passa a funcionar como um acessório – , a afirmação acaba por ser chocante nos tempos que correm, em que uma nova geração extremamente bem preparada não tem condições para prosseguir uma carreira de investigação. Pior ainda é que tal constatação vem acompanhada, no livro, de uma celebração dos “anos dourados” da instituição académica que acolheu AB, onde “reinava total liberdade e independência do espírito” (pp. 403-404). É que, não se esqueça, AB ali trabalhou durante mais de um quarto de século, porventura em regime de dedicação exclusiva. A liberdade para fazer o que bem lhe aprouvesse – num quadro de liberalismo suportado pelo Estado –, foi-lhe concedida pela tranquila estabilidade do orçamento, com o objectivo de proporcionar condições para a pesquisa e obra que lhe correspondesse.
 
[CONTINUA]
 
Uma história mal contada ou a teoria do apagão – por Diogo Ramada Curto, jornal Público / Ípsilon, 3 de Junho de 2016, p.24-26 – com sublinhados nossos.
 

[J.M.M.]

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