Tributo a Mário Cesariny, nos dez anos da sua morte – por José Manuel dos Santos
“Ouvimos esta voz com o poema
que nos traz e não sabemos se é a voz que diz o poema ou se é o poema que diz a
voz. Esta coincidência do dizer e do dito, do som e do sentido, do corpo e do
espírito, da poesia e da vida, do dia e da noite foi sempre o sinal de Mário Cesariny.
Já Breton escrevera: “Tudo
leva a crer que existe um certo ponto do espírito donde a vida e a morte, o
real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o
que está em cima e o que está em baixo deixam de ser apercebidos
contraditoriamente”. Cesariny afirmava: “O único fim que eu persigo / é a
fusão rebelde dos contrários”.
É por isso que estamos aqui:
não apenas para cumprir um acto de homenagem civil e cultural, mas acreditando que
Cesariny reconhecia neste lugar onde a sua luz encontra a sua sombra, um
sentido sagrado, dando a esta palavra a fundura mais funda e a liberdade mais livre. A morte é o que resta
do sagrado e mesmo isso está a desaparecer, afirmava ele. E, às vezes, falava
do osso sacro como de um segredo que é preciso guardar.
Cesariny era distante de tudo
o que é oficial, convencional e vazio, mas aceitava os ritos que protegem os
mitos. Foi assim que aceitou a Ordem da Liberdade, que lhe foi entregue em sua casa,
numa tarde em que tudo se calava para o ouvir. Ele recebeu a Grã- Cruz, beijou-a
e gritou: “A Santa Liberdade!”. A liberdade era a sua medida desmedida, o rosto
do seu rosto.
Nessa tarde, recordei uma outra
tarde passada com Jorge Luis Borges, que acabava de receber a Ordem de
Sant’Iago da Espada, que a sua cegueira o impedia de ver. Ele pediu-nos para lhe
descrevermos as cores e as figuras do colar. A seguir, num gesto que foi
repetindo, levou a mão ao frio do metal, exclamando: “Sant’Iago! Sant’Iago!” Falámos
então daquela passagem de São Paulo que diz “Agora, vemos como num espelho, mas
um dia veremos face a face”. Borges falava e a nossa visão era o rascunho da
sua cegueira.
Senhor Presidente da
República: a sua presença torna esta homenagem de muitos numa homenagem de
todos
Senhor Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa: porque Lisboa foi sempre a mais imaginada das cidades de
Cesariny
Senhor Ministro da Cultura: hoje
e aqui, este título fica mais completo se o ligarmos ao de poeta
Senhores Deputados
Cara Teresa Caeiro, sobrinha
de Cesariny
Senhora Secretária de Estado
da Inclusão, que tutela a Casa Pia de Lisboa, legatária do poeta
Instituições e Membros da
Comissão Organizadora do Tributo a Mário Cesariny
Caro Manuel Rosa, autor do
projecto do monumento funerário e seu testamenteiro
Família, amigos e admiradores
do Mário (onde incluímos os gatos, também eles família, amigos e admiradores)
Minhas Senhoras e Meus
Senhores
Sabemos que esta homenagem nunca
conseguirá oficializar, normalizar, naturalizar, neutralizar Cesariny. Ao
contrário, e por contraste, torna ainda mais nítido e invencível o seu escárnio
selvagem, a fúria firme e feroz, o desassombro ímpio.
A sua vida foi vivida em nome
da Liberdade, da Poesia e do Amor, de que os surrealistas fizeram a nova
trilogia, juntando ao “transformar o mundo” o “mudar a vida”. Em cada dia e em
cada passo dele havia uma grande razão, aquela que num poema reclamava: “Falta
por aqui uma grande razão/ uma razão que não seja só uma palavra/ou um
coração/ou um meneio de cabeças após o regozijo/ ou um risco na mão…” Cesariny
procurava o ouro do tempo.
Agora, lembro. O Mário fala
de Pascoaes, o velho da montanha, e conta o momento sagrado em que o conheceu.
Fala de Lautréamont e de Rimbaud com palavras lentas e acesas. Fala de Artaud e
a sua cara coincide com a dele. Já na rua, passa a velha que apanha o que
encontra e ele faz-lhe perguntas que guiam respostas assombradas. O Mário ri e diz:
“ É a Vieira da Silva!” Agora, estamos nos Açores e ele toca piano, enquanto,
da janela, vemos o mar erguer-se como no Moby-Dick, esse livro mágico e
trágico, que lia e voltava a ler.
Estar com Cesariny era partir
numa nave espacial e olhar cá para baixo com os olhos muito abertos. Havia nas
suas mãos um fogo que, quando queimava, mostrava a tragédia, e, quando iluminava,
fazia aparecer a comédia. Esse sentimento trágico e cómico da vida é o dos visionários
do visível. Ele confessou um dia: “ Para mim, só o momento da criação é
linguagem, tudo o mais é baço, não diz, pertence ao sono das espécies, mesmo
quando dormem inteligentemente.” Mas em todos os momentos dele havia criação.
Nunca o ouvi dizer lugares-comuns, ideias mortas, frases feitas.
Na sua poesia, as palavras
têm a exactidão cortante da ponta do diamante sobre o vidro, a velocidade densa
dos grandes êxodos, o brilho obscuro dos olhos no amor. Na sua pintura, as
cores levam o braço até à proximidade do mar e as formas são as do vento a abrir
o portão do castelo.
Cesariny gostava de anarquistas,
videntes, xamãs, usurpadores, hereges, piratas, incendiários e revoltosos. E de
reis destronados, deuses abolidos, bruxas acossadas, fidalgos arruinados, heróis
vencidos, náufragos salvos no último momento. Detestava tiranos, tiranetes, moralistas,
hierarcas, burocratas, preopinantes, instalados, acomodados, calculistas,
carreiristas, conformistas, cínicos, convencidos, contentinhos, coitadinhos.
Desses, ria com um riso que era
sal insolúvel e tinha a grandeza escura da tempestade no Verão. O país dos
risinhos, das piadinhas, das gracinhas, e das graçolas, não aguentava um riso tão
livre: enorme e desassombrado. Não suportava esse riso cheio de amargura e
desdém, de raiva e protesto. Nesse riso, passavam o riso antigo de Rabelais e o
riso moderno de Artaud, o riso dos funâmbulos e das feiticeiras.
Num país em que o medo gerava
cobardia e obediência, do medo dele nasciam coragem, insubmissão, subversão. No
fim, estava ainda mais desencontrado com aquilo com que sempre se desencontrou:
a vida pequenina, a vidinha de que falava o seu amigo Alexandre O’ Neill. E
agora ( “O tecto está baixo”, avisava-nos ele) só se fala da vidinha - e só a
vidinha fala.
Afinal, é preciso repetir a
pergunta de Holderlin: “Para quê os poetas em tempos de indigência?” Afinal, é
preciso repetir a resposta de Holderlin: “O que permanece os poetas o fundam”.
E a resposta de Cesariny: “A palavra poética é a palavra verdadeira. É a única
que diz.” Então, os poetas, se os houver, são para dizer o que ninguém diz,
mesmo que ninguém oiça. Mas nesse dizer que ninguém ouve salva-se a honra de um
tempo em que tudo se perde.
De Mário Cesariny, não basta afirmar
que a sua poesia é das maiores do nosso século XX. Nem que a sua pintura é das
mais originais desse tempo. É preciso reafirmar que, nele, pessoa, vida, morte,
obra, atitude, ímpeto tinham a força que nos atira para um abismo de claridade.
Nestes 10 anos da sua morte,
ouvir a voz de Cesariny é olhar o céu naquele momento em que o sol ainda não
partiu e a lua já chegou.
Tributo a Mário Cesariny, nos dez anos da sua morte – por José Manuel dos Santos [Texto lido na cerimónia que
assinalou a transladação dos restos mortais de Cesariny de um gavetão anónimo
para um jazigo individual do Cemitério dos Prazeres dez anos depois da sua
morte, jornal i, 8
de Dezembro de 2016 – com sublinhados nossos.
J.M.M.
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